O que é Criminalização?

domingo, 9 de maio de 2010

Texto escrito para o jornal "A Voz do Direito", do Centro Acadêmico Guedes de Miranda, Direito - UFAL.

O que é criminalização?


Na Universidade Federal de Alagoas tornou-se imensamente atual o debate em torno da criminalização dos Movimentos Sociais. Três estudantes estão sendo processados criminalmente por sua participação nas mobilizações que giravam em torno da discussão acerca da adesão da universidade ao Programa de Expansão e Reestruturação das Universidades (ReUni), no ano de 2007.


O debate é polêmico. Envolve aspectos variados que vão desde a qualidade da educação superior no país, à democracia no interior das universidades e além. Um ponto em especial, no entanto, merece ser explorado: a identificação de posturas do Movimento Estudantil a condutas criminosas.


A comunidade interior à UFAL se polarizou em relação à questão. A Reitoria e seus apoiadores têm plena convicção de que os estudantes merecem ser punidos criminalmente pelos atos que cometeram durante as citadas manifestações. Por outro lado, professores, estudantes e funcionários da universidade assinam um manifesto contra a punição. Até mesmo a mídia local tem se manifestado acerca da questão, em geral a favor da punição criminal dos estudantes. Vergonhoso exemplo é o editorial d'O Jornal da edição de 02 de maio, intitulado de “O esquerdismo estudantil”. Curiosamente, na mesma página, há textos assinados por figuras políticas do estado envolvidas reiteradas vezes em enormes escândalos de corrupção. Nunca se viu O Jornal pedir punição criminal para políticos corruptos, apesar de isto ser um crime considerado grave mesmo pela maioria de seus leitores.


A questão que se levanta é: por que a idéia da punição criminal dos estudantes divide opiniões? Tendo cometido um crime, não deveriam ser punidos de pronto?


O que parece emergir da polarização de opiniões acerca da questão é, justamente, o seu caráter eminentemente político. Por mais estranho que possa parecer aos acadêmicos de direito penal, o crime é mais do que a soma da anti-juridicidade, da tipicidade e da culpabilidade de seus agentes. Ele é uma construção sócio-política com marcada evolução histórica. Entender esta questão é fundamental para a discussão que, hoje, preenche os corredores da UFAL.


Os discursos pró-punição tendem a apresentar um traço comum: o crime é um mal e deve ser erradicado. Se através da punição preventiva ou do mais crasso retributivismo, a diferença é pequena aqui. O crime deve ser combatido e eliminado, como se isso fosse possível. Ele é um mal. Atenta contra a democracia, ou a moral, ou a paz social, ou os interesses juridicamente defendidos. As palavras são muitas para classificar a mesma coisa.


Acontece, porém, que o crime não é um mal. A mais crítica criminologia demonstrou que o crime é, apenas, uma condição politicamente definida para um determinado comportamento, no intuito de defender determinado interesse. Demonstrou, por consequência, que o processo de criminalização não é mais do que uma seleção de determinados indivíduos tidos como “desviantes”, que bem poderiam ser poupados ou não.


A criminalização se dá em duas vias. A primeira, na escolha das condutas a serem consideradas criminosas. Através de um determinado processo legislativo define-se o que deve ser punido. Ou seja, as camadas da população com maior influência política conseguem definir a defesa de seus interesses por parte do Estado. Esta defesa, em grande parte, se dá contra posturas das camadas oprimidas que, por esta mesma condição, podem chegar a pôr em xeque determinados interesses dominantes. Por exemplo: a propriedade. Isto, claro não exclui a criminalização de condutas universalmente prejudiciais como o homicídio. Mas explica como crimes praticados por pobres tendem a ser considerados mais graves do que crimes de colarinho branco, por exemplo. De quebra, explica porque O Jornal pede punição para estudantes, mas não para políticos corruptos.


A segunda via da criminalização é a seleção dos punidos. Definir que determinadas condutas encaixam-se em um específico tipo penal é um evidente processo de interpretação. Se todos aqueles que poderiam ter suas condutas identificadas a tipos penais fossem concretamente processados e punidos, o Estado não faria absolutamente mais nada além disto. O número de crimes que passa ao largo do sistema penal é surpreendente. Menos de ¼ dos crimes cometidos é efetivamente punido. No entanto, um largo número de punidos pertence às camadas mais pobres e aos movimentos sociais que a elas se aliam. Isto faz parte da criação de um inimigo interno, que serve para justificar condutas repressoras contra aqueles que discordam e tomam atitudes contra interesses poderosos.


No caso da UFAL, três estudantes correm o risco de serem punidos por uma manifestação que exigia um plebiscito na universidade acerca da adesão ao ReUni. Exigiam mais debates e uma decisão mais ampla do que a que foi tirada pelo Conselho Universitário. Por que não são processados os quase cem estudantes que participaram da exata mesma mobilização? A punição exemplar é execrada pelo direito penal liberal. No entanto, as evidências parecem demonstrar que nossos gestores, jornalistas e juristas não costumam se preocupar com isto. Eis o caso UFAL.


Por fim, uma última reflexão. Em sessão histórica o STF votou, por 7 a 2, pela não punição dos torturadores das forças militares e policiais do Brasil durante duas décadas de ditadura militar. A maior parte dos países latino-americanos e europeus que passaram por esta decisão tomaram-na em sentido contrário e puniram este crime de lesa humanidade. Este assunto merece uma discussão a parte. Mas nos arriscamos a levantar a questão: em um país que perdoa torturadores da ditadura, estudantes que exigem um plebiscito são selecionados para a punição penal pela mídia, pela gestão da universidade, pelo MPF e outras agências.


Como vai a democracia de vocês?

2 comentários:

Eli Magalhães disse...

Não que eu não goste do texto. Mas o limite de espaço do jornal do CAGM forçou a deixar questões importantes de fora. Mas foi o que deu para fazer =).

Abraços.

Anônimo disse...

Muito pertinente a discussão. Apesar de ter deixado questões importantes de fora devido ao espaço do jornal como já explicado. Acredito que o judiciário brasileiro não precisa punir de menos nem d+, mas de fato os culpados.