Como nasceu e como morreu o «Marxismo Ocidental»

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Texto de Domenico Losurdo que trata sobre as "democracias" ocidentais e suas relações com o mundo colonial.



Como nasceu e como morreu o «Marxismo Ocidental»

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19 Novembro 2010
Classificado em Internacional - Civilização ou Barbárie

imagemCrédito: ODiario.info


III Encontro Civilização ou Barbárie

Domenico Losurdo
Serpa 2010

Porque é que, depois de ter gozado de uma extraordinária fortuna nos anos sessenta e setenta, o marxismo caiu no Ocidente numa crise tão profunda? Vale a pena tomar como ponto de partida um debate de 1954 provocado por Norberto Bobbio. Este, embora justamente insistindo no carácter irrenunciável da liberdade «formal», conta a favor dos Estados socialistas o terem «iniciado uma nova fase de progresso civilizacional em países politicamente atrasados, introduzindo instituições tradicionalmente democráticas, de democracia formal como o sufrágio universal e a electividade dos cargos, e de democracia substancial como a colectivização dos instrumentos de produção». E, no entanto – é a conclusão crítica ¬– o novo «Estado socialista» ainda não foi capaz de transplantar para o seu seio o governo da lei e os mecanismos garantistas liberais, ainda não foi capaz de proceder à «limitação do poder» e deitar «uma gota de óleo [liberal] nas máquinas da revolução já realizada». Como se vê, estamos longe das posições assumidas pelo filósofo turinês na última fase da sua evolução, quando se torna em última análise um ideólogo da guerra do Ocidente: em 1954 são grandes a influência do marxismo e o prestígio dos países que dele se reclamam; neste momento, juntamente com a «democracia formal» Bobbio teoriza também uma «democracia substancial»; aliás, sobre os países socialistas exprime um juízo que não é univocamente negativo nem sequer no que respeita à «democracia formal».


Quais são as reacções dos intelectuais comunistas italianos? Para rejeitar ou atenuar as críticas dirigidas em primeiro lugar à União Soviética, como justificação parcial do atraso, eles poderiam ter aduzido o estado de excepção permanente imposto ao país nascido da revolução de Outubro e a ameaça de aniquilação nuclear que continuava a pairar sobre ele. Galvano della Volpe segue contudo uma estratégia absolutamente diferente, concentrando-se na celebração da libertas maior (o desenvolvimento concreto da individualidade garantido pelas condições materiais de vida). Assim, por um lado desvalorizam-se as garantias jurídicas do Estado de direito, implicitamente degradadas a libertas minor; e por outro, acaba-se por valorizar a transfiguração a que procede Bobbio da tradição liberal como campeã da causa do gozo universal pelo menos dos direitos civis, da liberdade formal. E contudo em 1954 ainda está de pé o sistema colonial e dentro do seu âmbito é claro que não se respeita nenhuma liberdade; nos próprios Estados Unidos os negros continuavam a ser largamente excluídos dos direitos políticos e, muitas vezes, até dos direitos civis (no Sul ainda não desaparecera o regime de segregação racial e de white supremacy). Todo empenhado na celebração da libertas maior, Della Volpe não se preocupa ou não é capaz de chamar a atenção para o clamoroso infortúnio de Bobbio.


O facto é que o marxismo ocidental daqueles anos se caracteriza largamente pelo menosprezo da questão colonial. Em 1961 Ernst Bloch publica Direito natural e dignidade humana. Como já emerge do título, estamos bem longe da desvalorização cara a Della Volpe da libertas minor; pelo contrário é explícita a reivindicação da herança da tradição liberal, submetida contudo a uma crítica que infelizmente mais parece uma transfiguração. Bloch censura ao liberalismo o propugnar uma «igualdade formal e apenas formal». E acrescenta: «Para se impor, o capitalismo só está interessado na realização de uma universalidade da regulamentação jurídica, que tudo abrange de modo igual».


Esta afirmação pode-se ler num livro cuja publicação é do mesmo ano em que em Paris a polícia desencadeia uma impiedosa caça aos argelinos, afogados no Sena ou mortos à bastonada; e tudo à luz do sol, aliás perante a presença de cidadãos franceses que, sob a protecção do governo da lei, assistem divertidos ao espectáculo: qual «igualdade formal»! Na própria capital de um país capitalista e liberal vemos em acção uma dupla legislação, que entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem determinado. Se depois tomarmos em consideração as colónias e as semi-colónias e virarmos os olhos por exemplo para a Argélia ou para o Quénia ou para a Guatemala (um país formalmente livre mas de facto sob o protectorado estado-unidense), vemos o Estado dominante, capitalista e liberal, recorrer em grande escala e de modo sistemático às torturas, aos campos de concentração e às práticas genocidas contra os indígenas. De nada disto há sinais, nem em Bobbio, nem em Della Volpe nem em Bloch.


Contudo, é precisamente nestes anos que começa a desenvolver-se nos EUA a luta dos afro-americanos. É um assunto que atrai as atenções da China de Mao Zedong, e pode ser interessante comparar as tomadas de posição de duas personalidades tão diferentes entre si. Se Bloch denuncia o carácter meramente «formal» da igualdade liberal e capitalista, o dirigente comunista chinês procede de modo bem diferente. Certamente, sublinha que os negros sofrem uma taxa nitidamente mais alta de desemprego em relação aos brancos, são relegados para os segmentos inferiores do mercado do trabalho e obrigados a contentar-se com salários reduzidos. Mas não é tudo: Mao chama a atenção para a violência racista desencadeada pelas autoridades do Sul e pelos bandos por elas tolerados ou encorajados e celebra «a luta do povo negro americano contra a discriminação racial e pela liberdade e igualdade de direitos». Bloch critica a revolução burguesa pelo facto de ela «ter limitado a igualdade à política»; em referência aos afro-americanos, Mao recorda que «a maior parte deles está privada do direito de voto».


Ressoam tons análogos no Vietname, onde está em curso uma grande luta de libertação nacional dirigida por Ho Chi Minh, que já em 1920 tinha acusado a Terceira República francesa nestes termos: «A chamada justiça indochinesa tem lá dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias dos europeus e dos europeizados». Não só são «vergonhosamente oprimidos e explorados», como são também «horrivelmente martirizados» e sofrem «todas as atrocidades cometidas pelos bandidos do capital». Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e Ho Chi Minh não existe nem a desvalorização cara a Della Volpe da libertas minor nem a ilusão (comum, com modalidades diferentes, a Bobbio, Della Volpe e Bloch), de que o capitalismo e o liberalismo apesar de tudo garantiriam a «igualdade formal» ou a própria «igualdade política». Como vemos, na denúncia das macroscópicas cláusulas de exclusão da liberdade liberal, o marxismo «oriental» empenha-se, compreensivelmente, bem mais do que o «ocidental».


Tornemos ao debate provocado por Bobbio em 1954. Há uma intervenção sensivelmente diferente da de Della Volpe. A polémica com o filósofo turinês agora desenvolveu-se assim: «Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais os princípios liberais sobre os quais se disse estar assente o Estado inglês oitocentista, modelo, creio, do regime liberal perfeito para quem raciocina como Bobbio?». A verdade é que a «doutrina liberal […] assenta numa bárbara discriminação entre as criaturas humanas», que alastra não só nas colónias mas também na própria metrópole, como demonstra o caso dos negros estado-unidenses, «em tão grande parte privados de direitos elementares, discriminados e perseguidos». Nesta tomada de posição não há nenhuma degradação a libertas minor da «liberdade formal» mas, ao mesmo tempo, não se perde de vista o facto de que a negar o seu gozo a ilimitadas massas de homens tem sido historicamente o próprio Ocidente liberal. A intervenção que acabamos de ver deve-se a um autor hoje quase totalmente esquecido, mas que responde pelo nome de Palmiro Togliatti, à época secretário-geral do PCI.


2. Nos anos sessenta e setenta do século XX um equívoco de massa caracteriza na Europa e nos Estados Unidos a esquerda de orientação marxista: as grandes manifestações a favor do Vietname entrelaçam-se tranquilamente com a homenagem tributada a autores inclinados a considerar definitivamente superados os movimentos de libertação nacional. Em 1966, na Dialéctica negativa, Adorno liquida a tese hegeliana do «espírito do povo», ou seja, do carácter essencial da dimensão e da questão nacional, como «reaccionária» e regressiva, por estar afectada de «nacionalismo» e ser «provinciana na época de conflitos mundiais e do potencial de uma organização mundial do mundo». É’ uma tomada de posição que a posteriori tirava legitimidade à guerra conduzida pela Frente de Libertação Nacional da Argélia, um povo e um país indubiamente mais provincianos, mais atrasados e menos cosmopolitas que a França contra quem se tinham insurgido. Seja como for, Adorno colocava-se na impossibilidade de compreender as grandes lutas que mo entanto se iam desenrolando diante dos seus olhos, a começar pela guiada pela Frente de Libertação Nacional do Vietname.


De resto, vejamos como sobre este ponto argumenta o «marxismo oriental». Três anos após a publicação da Dialéctica negativa morre Ho Chi Minh. No seu Testamento, depois de ter chamado os seus concidadãos à «luta patriótica» e ao empenho «pela salvação da pátria», no plano pessoal traça este balanço: «Por toda a vida, de corpo e alma servi a pátria, servi a revolução, servi o povo». Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, assim evocou o dirigente vietnamita o seu percurso intelectual e político: «Ao princípio o que me impeliu a crer em Lénine e na Terceira Internacional foi o patriotismo, e não o comunismo». O que provocou grande emoção foram em primeiro lugar os apelos e os documentos que apoiavam e promoviam a luta de libertação dos povos coloniais, sublinhando o seu direito de se constituírem como Estados nacionais independentes: «As teses de Lénine [sobre a questão nacional e colonial] despertaram em mim uma grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé, e ajudaram-me a ver claramente os problemas. Foi tão grande a minha alegria que até chorei». No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que fez em 1949, nas vésperas da fundação da República Popular Chinesa: «A nossa nunca mais será uma nação sujeita ao insulto e à humilhação. Pusemo-nos de pé […] A era em que o povo chinês era considerado incivilizado terminou agora».


Bem se compreende o comportamento dos dois grandes revolucionários. Por detrás deles actua a lição de Lénine, que assim caracterizara o imperialismo: trata-se de um sistema em cujo âmbito algumas ditas «nações modelo» atribuem a si mesmas «o privilégio exclusivo da formação do Estado», negando-o aos povos das colónias; sim, «poucas nações eleitas» pretendem edificar o seu «bem-estar» e estabelecer o seu próprio primado na base do saque e da dominação do resto da humanidade. Mas nesses anos a homenagem a Ho Chi Minh ou a Mao ou a Fidel não estimulava de modo nenhum uma distanciação do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo ocidental.


A razão profunda desta atitude contraditória será esclarecida de modo exemplar, uns decénios depois, por Hardt e Negri: «Da Índia à Argélia, de Cuba ao Vietname, o Estado é o presente envenenado da libertação nacional». Sim, os palestinos podem contar com a nossa simpatia; mas a partir do momento em que «se institucionalizarem», já não se pode estar do «lado deles». O facto é que «no momento em que a nação começa a formar-se e se torna um Estado soberano perdem-se as suas funções progressistas». Ou seja, só se pode simpatizar com os vietnamitas, com os palestinos ou com outros povos enquanto eles forem oprimidos e humilhados; só se pode apoiar uma luta de libertação nacional na medida em que ela não deixar de ser derrotada!


3. Neste clima espiritual e político, a cultura de orientação marxista começa a ser atraída e revirada do avesso por autores e correntes de pensamento que contudo deveriam ser vistos com uma certa distância critica. Irrompe em força Foucault com a sua análise da penetração ou da omnipresença do poder não só nas instituições e nas relações sociais mas já no dispositivo conceptual. É um discurso que fascina pelo seu radicalismo e que ainda por cima permite ajustar contas com o poder e a ideocracia como fundamento do «socialismo real», cuja crise se manifesta cada vez com maior nitidez. Na realidade, o radicalismo não só é aparente, como se vira no seu contrário. O gesto de condenação de todas as relações de poder, aliás, de todas as formas de poder quer no âmbito da sociedade que no discurso sobre a sociedade torna bastante problemática ou impossível a «negação determinada», a negação de um «conteúdo determinado» que, hegelianamente, é o pressuposto de uma real transformação da sociedade, o pressuposto da revolução. Para mais, este esforço de identificação e desmistificação do domínio em todas as suas formas revela lacunas surpreendentes justamente onde o domínio se manifesta em toda a sua brutalidade: sìm, bastante escassa ou inexistente é a atenção reservada à dominação colonial.


Pode-se ir mais longe: o colonialismo e a ideologia colonial estão largamente ausentes na história que Foucault reconstrói do mondo moderno e contemporâneo. A julgar por esta, a «aparição do racismo de Estado [deve-se situar] nos inícios do século XX». Quem tratou de pôr em causa esta cronologia foram com larguíssima antecipação os abolicionistas que já no século XIX queimavam na praça pública a Constituição americana, rotulada como um pacto com o diabo pelo facto de consagrar a escravatura racial. Se não na história dos Estados Unidos, Foucault poderia ter-se concentrado na história da Confederação secessionista ou da África do Sul, ou então poderia ter feito uma consideração de carácter geral: se analisarmos os países capitalistas juntamente com as colónias por eles possuídas, podemos facilmente dar-nos conta de que o fenómeno denunciado por Ho Chi Minh em relação à Indochina tem um carácter geral: estamos na presença de uma dupla legislação, uma para a raça dos conquistadores, e a outra para a raça dos conquistados. Neste sentido o Estado racial acompanha como uma sombra a história do colonialismo no seu conjunto; só que este fenómeno se apresenta com maior evidência nos Estados Unidos devido à contiguidade espacial em que vivem as diferentes raças. Aliás, quando em 1976 o autor francês se põe em busca de outra realidade para juntar ao Terceiro Reich sob a bandeira do «racismo de Estado», ele só consegue identificá-la na União Soviética, o país que desde a sua fundação desempenhava um papel decisivo em promover a emancipação dos povos coloniais e que em 1976 ainda estava em primeiro plano na denúncia da politica anti-negra conduzida pela África do Sul!


Tem-se observado que Foucault exerce uma considerável influência sobre Antonio Negri. Com efeito… Nos nossos dias, autorizados especialistas estado-unidenses de orientação liberal descrevem a história do seu país como a história de uma Herrenvolk democracy, isto é, de uma democracia válida só para o Herrenvolk (é significativo o recurso à linguagem cara a Hitler), para o «povo dos senhores» e que, por outro lado, não hesita em escravizar os negros e em eliminar os peles-vermelhas da face da terra. A Empire, em contrapartida, fala em tom compungido de uma «democracia americana» que rompe com a visão «transcendente» do poder, própria da tradição europeia.


Chegados a este ponto, proponho uma espécie de experiência intelectual ou, se quiserem, de jogo. Comparemos dois trechos de dois autores entre si sensivelmente diferentes, mas ambos empenhados em contrapor positivamente os Estados Unidos à Europa. O primeiro celebra «a experiência americana», sublinhando «a diferença entre uma nação concebida na liberdade e devota ao princípio de que todos os homens foram criados iguais e as nações do velho continente, que decerto não foram concebidas na liberdade».


E agora vejamos o segundo: «O que era a democracia americana senão uma democracia assente no êxodo, em valores afirmativos e não dialécticos, no pluralismo e na liberdade? Estes mesmos valores – juntamente com a ideia da nuova fronteira – não viriam alimentar constantemente o movimento expansivo do seu fundamento democrático, para além das abstracções da nação, da etnia e da religião? […] Quando Hannah Arendt escrevia que a Revolução americana era superior à francesa dado que a Revolução americana se devia entender como uma busca sem fim da liberdade política, enquanto a Revolução francesa tinha sido uma luta limitada em torno da escassez e da desigualdade, exaltava um ideal de liberdade que os europeus haviam perdido mas que fariam ganhar terreno nos Estados Unidos».


Qual dos dois trechos aqui citados é mais apologético? É difícil dizê-lo, embora o segundo pareça mais inspirado e mais lírico: deve-se à pluma de Negri (e de Hardt), enquanto o primeiro é de Leo Strauss, o autor de referência dos neoconservadores americanos!


Fonte: http://www.odiario.info/?p=1812

A Democracia de 2010

domingo, 14 de novembro de 2010

A DEMOCRACIA DE 2010


O Brasil passou por um momento importante no último fim de semana. Após uma jornada de meses, escolheu um novo nome para o cargo mais alto da república. Dilma Rousseff foi eleita a primeira mulher a comandar o executivo nacional.


O caráter dessa inovação no cenário político pode nos trazer a idéia de que vivemos um novo momento. Parece mesmo que o país consolida sua democracia. Saímos de um presidente metalúrgico, para uma mulher no poder. Parece que estamos em uma época inédita na história tupiniquim. Algo análogo ao presidente negro estadounidense. Será real esse avanço?


Gostaria apenas de apresentar comentários muito breves acerca de todo o processo. E, talvez como García Marques, contaria o final no início. Não mudou nada. Estamos vendo a “crônica de um governo anunciado”. Ele não me parece representar qualquer avanço democrático de fato. E não sou do time que acha que é melhor não avançar do que retroceder, como alguns petistas (e mesmo correntes políticas da esquerda da qual, acredito, esses últimos, em conjunto, não fazem parte).


Penso que a questão nodal foi a caracterização da democracia utilizada pelas candidaturas majoritárias durante toda a campanha. Em verdade, como se pode lembrar facilmente, todos esses candidatos defenderam a “democracia”. Pelo menos, em suas palavras. E, entre PSDB e PT (para restringir, aqui, ao segundo turno), não demonstraram quaisquer diferenças essenciais em suas formas de compreender esse tal conceito.


Não sou eleitor do PT e muito menos simpatizante. Mas é preciso admitir que, nesse ponto, a candidatura de Dilma contou com mais coerência. O PSDB, tendo perdido seu local de opção exclusiva da direita para os cargos do Executivo, regrediu a formas de discurso incrivelmente retrógradas para poder costurar uma possibilidade de disputa com os lulistas. Quando ambos os partidos são adeptos das privatizações, da assistência social focada no critério de vulnerabilidade e não universalizada, do predomínio da iniciativa privada sobre os serviços públicos etc., não há mesmo outro jeito de se diferenciar e disputar votos.


A epifania da disputa pelo cargo de “defensores da democracia” ocorreu após a declaração de Lula de que iria vencer o “partido da mídia”. PSDB-DEM fizeram o maior escarcéu contra o “ataque à liberdade de imprensa”. Eu peço perdão pelo termo escarcéu, mas é o mais respeitoso a ser utilizado para tal atitude. A vontade mesmo era de dizer: xilique. Em um simples piscar de olhos, o Lula virou algo tão grotesco quanto os censores do regime militar de décadas atrás. E o piscar de olhos também foi o tempo necessário para a direita tradicional esquecer completamente as declarações com teor muito similar de Serra sobre os “blogues sujos” que declaravam apoio ao partido do Governo. Da mesma forma, não foram poucos dentre seus apoiadores que mantiveram a mesma atitude de Lula frente a veículos como a Carta Capital, por exemplo. O presidenciável do PSDB não queria vencer eleitoralmente tais mídias?


Convenhamos, nisso é necessário ficar do lado do Lula. A idéia de que partidos precisam ter registro no Tribunal Eleitoral para assim serem denominados é bastante simplista. Os jornais interferem diretamente na formação de opinião pública e, consequentemente, nos atos de seus receptores. Eles tomam deliberadamente parte, escolhem um lado na disputa política, seja ela declarada ou não. O conceito aqui é amplo. Abarca, então, os instrumentos privados de hegemonia. Isso porque o critério para defini-lo é seu projeto de classe, e não as letrinhas que vêm depois do “P”.


E essa é a principal questão da disputa de 2010. Quais os projetos de classe em embate? E se por um lado ficamos com Lula na questão da imprensa, por outro, Serra se cobre de razão ao dizer o seguinte: o PT deu continuidade a FHC. A política neoliberal foi mantida impecavelmente, houve privatizações, ao contrário do que dizem os petistas, houve sucateamento do serviço público, ao contrário do que dizem os petistas, houve ataque ao funcionalismo, ao contrário do que dizem os petistas, houve uma política de juros estratosféricos e superávit primário, ao contrário, sempre, do que dizem os petistas. Há uma longa lista de caracteres que poderia ser utilizada. Não é o objetivo aqui.


A redução da eleição a um plebiscito não foi uma decisão unicamente do governo que está por acabar. Ela foi a decorrência lógica do processo de maturação da “democracia” que se estabeleceu no país. Aliás, entender 2010 como um grande plebiscito é até inflar o ego do pleito. A disputa não se colocava entre projetos antagônicos. Não era um “sim” ou um “não”. Era apenas um “esse ou aquele”. Duas partes da elite econômica disputando a melhor maneira de reproduzir o capital. Dois empregados brigando pelo cargo de gerência.


O que fica por trás de todo o discurso em defesa da democracia dos candidatos majoritários é o conteúdo que eles dão a esse conceito. Defendem, na verdade, uma “democracia” formalizada, autonomizada, que pode funcionar “muito bem obrigado”, sem o povo. E, a bem da verdade, contra o povo. O Estado Democrático e suas instituições se colocam enquanto uma forma alienada, separada, estranha, à intervenção popular. O voto se resume ao direito que as pessoas têm de escolheres entre os candidatos que atendem aos requisitos formais já pré-estabelecidos e pró-ordem.


Não é a toa que a candidatura de Plínio serviu apenas para fazer um pequeníssimo reboliço no pleito. Nada mais. Com acesso aos debates eleitorais, mas vetado da mídia, sem qualquer possibilidade de um financiamento sequer equiparado às candidaturas majoritária, com um tempo de programa eleitoral muito reduzido, não se podia fazer muito mais. E nem se fale, quanto a isso, das outras candidaturas de esquerda que sequer chegavam ao debate, em condições bem mais desvantajosas.


A construção de uma verdadeira democracia é concomitante à construção de uma outra sociedade. Ter o mercado como mediador primordial da vida humana é o que nos afasta de uma possibilidade real de autogestão. Lutar por democracia real, hoje, significa lutar pelo poder dos trabalhadores, aqueles quer realmente têm interesse em uma transformação radical da sociedade. Aqueles que, enfim, possuem interesse em tomar para si o poder político e destruir seus privilégios. Significa lutar pelo socialismo e contra a farsa da democracia burguesa.

AS CAÇADAS DE PEDRINHO À CAÇA DA LIBERDADE INTELECTUAL - CONTRA O OBSCURANTISMO PSEUDO-LIBERTADOR!

Reflexão de Carlos Mazzeo (UNESP-Marília e PCB) sobre a questão racial no Brasil. Interessante para a discussão dos recentes fatos em torno da questão dos nordestinos após a vitória de Dilma. Fonte www.pcb.org.br

AS CAÇADAS DE PEDRINHO À CAÇA DA LIBERDADE INTELECTUAL - CONTRA O OBSCURANTISMO PSEUDO-LIBERTADOR!

imagemCrédito: Mazzeo


Antonio Carlos Mazzeo*

Não me estranha ler nas páginas dos jornais manifestações de xenofobia e racismo. Elas estão por toda parte, em todo o mundo. Ciganos na França e na Itália, árabes, romenos e polacos em toda a Europa, latinoamericanos e negros nos EUA, índios no Brasil central, negros e nordestinos no Brasil meridional, etc. Um velho fenômeno muito discutido, mas pouco apreendido em suas raízes fundantes. O ponto nevrálgico e "universal" dessa discriminação é que todas essas populações discriminadas tem como origem países ou regiões miseráveis. São os "Condenados da Terra", como diria Frantz Fanon, sem perspectivas, abandonados à própria sorte, estigmas vivos, membros permanentes da inclusão exclusora da ordem e da lógica do capitalismo.


Muitos intelectuais e ativistas de movimentos contra o racismo e a discriminação apontam como elemento central do problema duas questões correlatas: a cultura e a ideologia no que, em princípio, mas só em princípio, estamos de acordo. A dominação política (aqui em sentido ideo-cultural) sempre foi acompanhada por justificativas de superioridade, seja "racial", seja "cultural". Toda forma social hegemônica buscou legitimação afirmando-se como superior diante dos outros povos. Até seus deuses eram maiores e mais poderosos que o dos outros! Rá do Egito era superior à deusa Saushka (equivalente à deusa Ishtar mesopotâmica) dos Hititas. Joevá, o deus vingador dos judeus (e depois dos cristãos), superior ao panteon egípcio e romano, que fazia cair muralhas ao som das trombetas dos anjos. No capitalismo, as manifestações ideo-culturais ocidentais são apresentadas como "superiores" às outras, e assim por diante. Aliás, foi esse cientificismo positivista, típico da ideologia da sociedade capitalista, que justificou a assim chamada "teoria racial" dos finais do século XIX e do século XX.


Desde o ensaio de Gobineau, Essai sur l'inégalité des races humaines, de 1855, e dos escritos raciais do inglês Huston Chamberlain, com seu livro Os fundamentos do Século XIX (Die Grundlagen des Neunzehnten Jahrhunderts) de 1899, até o polêmico e racista livro de Herrstein e Murray, The Bell Curve (A Curva de Bell ), de 1994, todas as tentativas de "justificar" a desigualdade entre os seres humanos partiram de "bases" fundadas em aspectos raciais. A descoberta do DNA e a comprovação de que não há variações na composição genético-estrutural dos seres humanos, quer dizer, não existem raças humanas mas sim as manifestações fenotípicas", ou seja, meramente morfológicas, de aparência, não desestimulou os adeptos das "teorias das raças", como atesta o livro de Murray e Herrstein. Ali, obscuramente tenta-se comprovar que o isolamento de parte da espécie humana proporcionou, segundo os autores, o desenvolvimento qualitativamente diferenciado da "raça branca".


Numa entrevista à Folha de São Paulo (05/11/2007), um dos autores do livro, o cientista político Charles Murray assinala: “Pois a ciência está nos dizendo claramente nos últimos anos que, ainda que o ser humano tenha a mesma imensa maioria de genes, aquele número comparativamente pequeno que difere pode produzir diferenças muito grandes entre grupos. Quanto à probabilidade de ter certas doenças, por exemplo, como a Doença de Tay-Sachs nos judeus ou a anemia falciforme nos negros. Certamente afeta a aparência física e não há razão para pensar que não tenha havido pressões evolucionárias diferentes em relação à habilidade intelectual. Não sabemos ainda se é verdade, mas certamente não há nenhuma razão para pensar que não é verdade" (cit.). Mais adiante, Murray, justificando outro teórico racista estadunidense, o prêmio Nobel de fisiologia e medicina, James Watson - para quem os negros são inferiores aos brancos - , afirma que o erro de Watson foi declarar aos jornalistas que "quem tem que lidar com empregados negros sabe a diferença".(cit.)


A tal "prova" científica defendida pelos "três amigos" (Murray, Herrstein e Watson) é a capacidade intelectual diferenciada entre negros e brancos. Para tal, realizaram testes de quoeficiente intelectual (QI) aplicados em negros e brancos, e entre "tipos" diferenciados de brancos" (variante racial/de espécie?) como os judeus. Independente de ser essa uma abordagem meramente ideológica, ainda se quiséssemos buscar algum mérito científico nessas conclusões, perderíamos muito tempo para nada. Em primeiro lugar, é sabido que testes de QI tem por base um "tipo" de formação cultural e intelectual centrado numa universalidade cultural relativa, porque centrada nos países ocidentais ou de forte influência ocidentalizante. Dispersa e fragmentada em países periféricos e onde predominam etnias distanciadas do mundo ocidental. Em segundo lugar, e que se entrelaça com o primeiro argumento, há o fator social e de classe, porque o acesso à cultura é sempre dificultado aos segmentos proletarizados das sociedades contemporâneas. Isto é, esse tipo de teste pressupõe uma pessoa que possua formação integralmente articulada com os valores da sociabilidade capitalista em sua totalidade. Finalmente, essa avaliação ignora o fundamental da construção da sociabilidade humana, sua PRAXIS SOCIAL! É em sua praxis (o trabalho enquanto praxis humana) que o homem, como ser social, se objetiva e se diferencia de si e dos outros homens (como seres sociais ontológicos). Dai, as diferenças estão centradas em suas formas societais, nas formas de organização da vida. Os diferentes níveis de compreensão do mundo e de construção civilizatória criam as condições e os "graus" de sofisticação científica e tecnológica entre as formas de sociabilidade. Nunca o determinismo biológico!


Seguramente um indígena ou um negro não familiarizado com o universalismo burguês seria reprovado num teste como esse. Além do mais, as argumentações dos "três amigos" são recheadas de senso comum preconceituoso e isso elevado à condição de "ciência", ou melhor dizendo, de pseudo-ciência, torna-se arma perigosa para preconceitos e intolerâncias de todos os matizes. Para amenizar suas concepções racistas, e dentro de um racismo às avessas, Murray afirma que chegou à conclusão que os judeus possuem um quoeficiente intelectual acima da média humana, principalmente os asquenazes (judeus da Europa oriental). Esse tipo de afirmação plena de ideologismos, ignora processos históricos, a luta pela e contra a dominação e o "supremacismo" dos países dominantes, principalmente na fase imperialista do capitalismo. Se notarmos a última argumentação sobre os judeus asquenazes (que geraram intelectuais de grande expressão, como Freud, Einstein e Mahler, entre outros) veremos que ela está baseada numa pretensa "mutação genética", porque estes judeus miscigenaram-se com os brancos europeus!


Nada diferente do que propunha nosso mestiço racista de Saquarema Oliveira Viana, que já em seu Populações Meridionais do Brasil, de 1920, propunha a miscigenação para "aprimorar" e forjar uma "raça" brasileira e com isso, eliminar os aspectos "degenerados" presentes no negro e nos índios! Com informações de uma ciência genética incipiente, esse autor pregava uma sutil "limpeza" racial através da preponderância genética branca, isto é, a teoria eugênica do embranquecimento do brasileiro. O historiador Thomas Skidmore, em seu livro Preto no Branco, lembra da boa impressão que tal teoria causou em Theodore Roosevelt, futuro presidente estadunidense, em artigo publicado no jornal Correio da Manhã onde afirmava que o projeto era a eliminação total do negro, branqueando-o gradativamente através da miscigenação.


Ora, essa visão permeou todo o imaginário intelectual brasileiro, pelo menos até a segunda metade do século XX e vem permeando ainda hoje, mesmo que de forma mais "sofisticada" e dissimulada. Não é nenhuma novidade que nas forças armadas e até em muitos cursos de direito e de biologia, essas expressões ideológicas ainda são visitadas. intelectuais como Nina Rodrigues, que apesar de ter uma proposta de política "afirmativa" para o negro brasileiro, irmanava-se a Sylvio Romero na visão cientificista da "inferioridade" do negro. Podemos dizer que política e ideologicamente o primeiro confronto real contra a teoria do branqueamento, então visão hegemônica na sociedade brasileira, foi realizada na prática pelo PCB (Partido Comunista Brasileiro), ao lançar como candidato à presidência da república, o negro e operário marmorista, Minervino de Oliveira, através do Bloco Operário e Camponês (BOC), em 1930.


Outros intelectuais da época, também pagaram seus tributos ao velho preconceito, gerado nas senzalas das casas grandes, mesmo que tenham colocado questões relevantes sobre a problemática "racial" brasileira, como Nina Rodrigues. Gilberto Freire publica seu Casa Grande e Senzala, no mesmo ano em que Monteiro Lobato publica Caçadas de Pedrinho, em 1933. Três anos depois, Sérgio Buarque de Holanda publica seu Raízes do Brasil. Tanto em Gilberto Freyre como em Sérgio Buarque, estão presente fortes traços da visão patrimonialista e escravista, como resultado não só da sociabilidade escravista e agro-exportadora, como também de seu núcleo ideológico legitimador. Para Freyre, o escravismo brasileiro foi "brando" permitindo a "interação positiva" entre escravo e senhor. Para Buarque de Holanda, a sociabilidade da escravidão gera o brasileiro como "homem cordial"! Em 1928 é publicado Macunaíma, de Mário de Andrade, romance que também apresenta problemas,quando avaliamos sua caracterização do brasileiro como o índio aculturado e sem caráter (nacional) e o da miscigenação racial e cultural do Brasil, considerada como negativa, representada pelo imigrante italiano.


Se foi assim com esses intelectuais, se foram produtos ideológicos de uma forma de sociabilidade, não poderia ser diferente com Monteiro Lobato. Em 1918, sai a primeira edição de Urupês, onde está seu o anti-herói Jeca Tatú, matuto caipira, caboclo preguiçoso que encarna o que há de pior no país. Ai não é o negro mas o caboclo, mestiço de branco com índio, que é o alvo da crítica, pelo menos até a década de 1920, quando pesquisas científicas demonstram que a malfadada preguiça do caboclo Jeca Tatú era resultado de doenças várias, presentes no Vale do Paraíba. Imediatamente Lobato escreve um prefácio para seu livro pedindo desculpas a seu personagem, dizendo não saber o motivo real de sua indolência. Seu personagem será utilizado por campanhas sanitaristas de combate as pragas endêmicas em todo o país. Tanto em Urupês como em Caçadas de Pedrinho (1933), estão presentes as contradições de uma intelligentzia hegemônica moldada por uma sociedade que pagava seus tributos a séculos de escravidão e de autocracia oligárquica. Os estereótipos sobre a população não branca, negros, mestiços e índios grassavam em nossa sociedade. Havia também os estereótipos dos imigrantes que chegavam. O italiano comilão, briguento e agitador, o polaco bêbado, o espanhol miserável de sapatos rotos, as lituanas "vagabundas e prostitutas" e tantos outros.


Mas se temos estereótipos preconceituosos nas obras de Lobato, e certamente encontraremos muitos deles, ali também estão balanços críticos de um voraz processo de modernização "pelo alto", típico do capitalismo brasileiro. Em Urupês, e Negrinha estão as denúncias de uma sociedade de burgueses parasitários e de um Estado burocrático, de abusos contra a infância, do preconceito racial. Lobato em suas obras "adultas", desvela um Brasil que é violento contra as mulheres e contra os imigrantes. Temos em Lobato um homem de seu tempo, com as contradições de seu tempo, com as limitações de um intelectual preocupado com o nacional, mas que nunca chegou a ser intelectual nacional-popular, como diria Gramsci. A ruptura e a construção de uma intelectualidade de caráter nacional-popular, afinada com o projeto dos trabalhadores começará a ser organizada a partir de intelectuais orgânicos do movimento operário e popular, como Astrojildo Pereira, Octávio Brandão, Nelson Werneck-Sodré e Caio Prado Jr.


O que depreendemos dessas breves considerações é que obras de importantes intelectuais nos ajudaram compreender o Brasil e a construir elementos analíticos para lutar contra o preconceito, a exploração dos mais fracos e contra o obscurantismo. Tentar censurar Lobato, ou qualquer produção intelectual, estejamos de acordo ou não com ela é cair no obscurantismo. É travar a luta da emancipação humana com "argumentos" de força, os mesmos da inquisição ou do nazi-fascismo. Não se combate a ideologia do racismo com racismo "qualificado". Não se liberta aprisionando. A liberdade e a crítica devem ser nossas armas fundamentais, se quisermos construir uma sociabilidade superior a esta capitalista.


*Antonio Carlos Mazzeo é membro do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro - PCB.