A Superação da Dicotomia dever ser e ser como Tema da Pesquisa Filosófica do Marxismo sobre o Direito

terça-feira, 2 de agosto de 2011



A Superação da Dicotomia dever ser e ser como Tema da Pesquisa Filosófica do Marxismo sobre o Direito

ELI MAGALHÃES

A crítica marxista do direito tem contribuições de imenso valor no que diz respeito ao entendimento do fenômeno jurídico. A principal delas tem sido aquela que, com raízes no soviético Pashukanis, concebe a forma jurídica como correlata à forma mercadoria. Atitude tal que, segundo Karl Korsch, liga esta concepção àquela apresentada por Lukács em sua teoria da reificação.

Esta, contudo, parece-nos uma grande contribuição para a compreensão do direito em termos de uma sua teoria geral. Ou seja, em termos da explicação teórica acerca de sua ontologia, sua forma de ser, sua lógica de funcionamento, por assim dizer. Entender o direito ligado aos imperativos econômicos da sociabilidade burguesa é uma aquisição importantíssima para discussões estratégicas fundamentais no seio da esquerda: reforma e/ou revolução; Estado e transição ao comunismo; luta por direitos etc. No entanto, não se pode assumir que ela esgota toda a reflexão crítica a ser feita em relação ao tema.

Não querendo constituir divisões estanques, este texto preocupa-se com uma outra perspectiva que não a da teoria geral do direito, mas a da filosofia do direito sob um viés crítico e, especificamente, marxista. Tratamos aqui de apontamentos gerais, não especificamente de uma discussão teórica de fundo, que estaria absolutamente além dos nossos limites aqui. Optamos, por enquanto, por apresentar mais uma proposta, do que uma reflexão madura. Não se trata aqui, portanto, de um texto acadêmico, mas de uma proposta para debate. Esclarecimento que apenas consta aqui por conta do tema a ser abordado, que, com certeza, merece um retorno posterior com maior rigor teórico e formal.

A filosofia do direito, diferentemente de uma teoria geral, estaria preocupada não apenas com o entendimento do fenômeno jurídico enquanto tal, mas com sua relação com as diversas outras dimensões da, digamos, razão prática dos homens. É dizer, ao invés de entender a ligação do direito com as lutas de classe, com a economia política, com os interesses de classe da burguesia, como o fazem Pashukanis, Stuchka e outros, pensamos que aqui o mais importante cai para a relação entre, por exemplo, direito e moral, direito e ética, direito e práxis etc. O leitor verá que estaremos longe de explorar todas estas relações neste texto. Mas intentamos apenas apresentar um roteiro que nos parece ser promissor em relação a uma postura do marxismo frente à filosofia do direito: sua proposta de entendimento da relação entre valor e fato. Entre, em outras palavras, dever ser e ser. Um tema, como se pode perceber, completamente ligado à filosofia do direito.

Andrew Feenberg, em seu Lukacs, Marx and the sources of the Critical Theory, apresenta uma hipótese interessante de tratar as obras dos autores que constam de seu título como meta-teorias da filosofia tradicional. Não precisamos aceitá-la por completo. Mas podemos mantê-la naquilo que parece expressar uma boa chave de entendimento da relação entre Marx e toda a filosofia que o precede, especialmente a filosofia clássica alemã.

Com tal sugestão, Feenberg quer apresentar as obras de juventude de Marx (aqui deixaremos de lado a discussão apresentada sobre o jovem Lukács), como uma investigação acerca das antinomias da filosofia tradicional. Ou seja, uma espécie de crítica da ideologia da sociedade de classes. Evidente que, para tanto, Marx teria já de ter se apropriado da descoberta hegeliana de que a história possibilita a mudança das formas de pensar. No entanto, como mais tarde vai se transformando ainda mais claro no pensamento marxiano, a determinação social do conhecimento, no que diz respeito à filosofia, encontra, em diversas eras, um ponto em comum: a divisão de classes e a propriedade privada. Este solo comum teria permitido que as grandes questões da filosofia tivessem permanecido, em essência, as mesmas. Por exemplo, a dicotomia entre interesse privado e interesse público, presente já no pensamento dos gregos, e remanescente ainda em Hegel e no próprio Marx.

Marx teria inaugurado uma outra forma de filosofia ao estender a ação humana para além do campo da ética, da política etc. Com sua teorização acerca do trabalho como centro ontológico de auto-afirmação humana, ou seja, como a própria categoria que permite aos seres humanos existirem enquanto gênero que constitui a si mesmo e ao seu mundo, ele supera limites deixados pela filosofia tradicional. Marx historiciza de maneira materialista, portanto, as dicotomias enfrentadas pelos filósofos que o antecedem como valor e fato, dever ser e ser, forma e conteúdo etc., e compreende que sua superação não depende do exercício especulativo, como gostaria Hegel, mas da superação das condições históricas que impõem estas mesmas dicotomias.

Com isto, trata-se de encontrar no próprio solo social a origem de tais dicotomias ao mesmo tempo em que se busca na discussão filosófica de seu tempo inspirações à sua superação. Por exemplo, foi Kant quem declarou que o homem jamais deveria ser visto enquanto um meio, mas como um fim em si mesmo. O próprio Kant, contudo, não pôde perceber que a sociabilidade burguesa que dá bases à sua teorização força a utilização do homem como um meio quando o degrada a um ser estranhado em diversas dimensões como apresenta Marx em seus Manuscritos de 1844. O homem estranhado de sua atividade, o trabalho, estranhado dos outros homens, do gênero humano e da natureza.

Rousseau, a seu turno, vendo a civilização como espaço de degradação do homem que, em natureza, é bom, chega a declarar a propriedade privada como a origem da desigualdade humana, mas não é capaz de propôr sua superação. Não por acaso, sua filosofia política é carregada com um preenchimento moral. Por exemplo, a necessidade (e a fé) da virtude do cidadão que participa da assembleia e age em interesse de todos. Algo que o próprio Kant adota, entendendo isto como uma diferença entre o dever ser e o ser. Rousseau denuncia a “sociedade de calculadores” em que vive, onde todos buscam a degradação do lucro, mas encontra a solução para ela não na superação da propriedade privada, como Marx, mas na educação moral para uma vida não submetida aos ditames do comércio.

O pensamento marxiano não se caracteriza por abrir mão de toda a filosofia que o precede. Antes, critica-a justamente na intenção de preservar o seu núcleo racional. Com isto, a máxima kantiana do homem como um fim em si mesmo pode ser recepcionada por Marx. Mas não como um fato já dado ou um valor inalcançável. Seria, então, apenas uma possibilidade, uma potência humana, identificada pela filosofia tradicional, mas relegada ao plano especulativo por conta das insuficiências desta em superar o solo social em que vive.

A filosofia burguesa, em seus momentos de pico, teria desvendado chaves importantes para a compreensão das forças próprias do gênero humano, mas seu apego às condições históricas em que vive, é dizer, à divisão de classes e, principalmente, à propriedade privada, não teria permitido que ela colocasse tais potencialidades como centro de sua preocupação. Em suma, não teria permitido que ela vislumbrasse a superação material da dicotomia entre o dever ser do homem como fim em si mesmo, e o ser (realmente existente) do homem como um mero meio de satisfação de interesses egoístas na sociabilidade burguesa. Em outras palavras, a filosofia tradicional não poderia conceber outra sociabilidade que não a burguesa e, por óbvio, não poderia conceber sua superação histórica. Logo, não poderia vislumbrar, por exemplo, a revolução socialista, nem sua necessidade, nem sua mera possibilidade.

A revolução, portanto, não apenas liberaria o gênero humano do estranhamento (e da reificação, se quisermos incluir Lukács), mas cumpriria, também, o papel de realizar a filosofia. Ela resolveria antinomias que o pensamento especulativo, por si só, não pode resolver. Desta forma, a divergência entre dever ser e ser, teria de ser explicada a partir da ótica do dilaceramento do gênero humano provocado pela propriedade privada e pela sociedade de classes. A revolução, além de sua evidente natureza política, seria também uma exigência da razão. Razão esta que não existiria apenas na cabeça dos filósofos, mas que precisava de um correlato material. A filosofia precisaria ser realizada. O homem como fim, deixaria de ser um objetivo axiológico especulativo, para tornar-se quase que um programa, digamos, filosófico-político. Afinal, ao filósofo não seria apenas permitido interpretar o mundo, mas também transformá-lo.

As antinomias identificadas pela filosofia burguesa seriam dadas por tendências e contra tendências realmente existentes na vida social. Evidente que as soluções especulativas não seguem esta lógica em sua totalidade. Por exemplo, a república de Platão possuiria, evidentemente, inúmeras dificuldades em tornar-se real. Mas não é o mesmo com o contrato social de Rousseau? Contudo, a possibilidade de que estas respostas sejam dadas coloca definitivamente a questão da busca de uma resolução para as divergências entre interesse privado e interesse público, por exemplo. E a crítica de Marx em Para a Questão Judaica, ao papel do cidadão submetido por completo ao indivíduo burguês e, portanto, incapaz de cumprir o papel de representante do gênero humano, não visa, por sua vez, descartar a necessidade de constituição da humanidade enquanto gênero. Pelo contrário, ela visa, aqui também, superar o conteúdoirracional da sociabilidade burguesa, apresentado com uma forma racional pela filosofia. Ou seja, o Estado democrático-burguês, apresentado como solução para tal dicotomia é uma farsa, mas o é por estar ainda baseado na propriedade privada que exige um burguês egoísta, e não no ser humano genérico, que é traduzido especulativamente no cidadão.

Esta própria divisão entre o cidadão especulativo, e o indivíduo burguês realmente existente é uma chave interessante para o estudo marxista da relação entre direito e moral. Enquanto esta última está relacionada com as decisões particulares, a juridicidade justifica-se por apresentar-se enquanto decisões gerais instituídas em normas de convivência que devem ser seguidas por todos independentemente de seu convencimento pessoal. Como Mészáros aponta em seu A Teoria da Alienação em Marx, a mera existência do direito demonstra como a moral falha na sociabilidade burguesa em orientar a ação dos indivíduos em direção ao bem comum. No entanto, o direito por si só, destituído de qualquer orientação valorativa torna-se mero instrumento de arbítrio, ao fazer passar determinados valores particulares como genéricos. Enquanto a moral, destituída de legalidade jurídica, torna-se normatização inócua.

Ou antes, é transformada em justificação de sua própria não realização. Com diz o próprio Marx nos Manuscritos de 1844:

A moral da economia nacional é o ganho, o trabalho e a poupança, o ascetismo – mas a economia nacional promete-me satisfazer minhas carências – A economia nacional da moral é a riqueza em boa consciência, em virtude etc., mas como posso ser virtuoso se nada sou, como posso ter uma boa consciência se nada sei? – Está fundado na essência do estranhamento que cada esfera me imputa um critério distinto e oposto: um, a moral; outro, a economia nacional, porque cada uma é um estranhamento determinado do homem e cada uma fixa um círculo particular da atividade essencial estranhada; cada uma se comporta estranhadamente com relação à outra” (…) “Além disso, a oposição entre a economia nacional e a moral é também apenas uma aparência e, assim como é uma oposição, novamente não é oposição alguma. A economia nacional apenas expressa, a seu modo, as leis morais”.

Não há, portanto, uma relação verdadeira de pertencimento do indivíduo ao gênero, mas uma disputa do primeiro contra o último. Uma sociedade de mônadas que se chocam em favor de seus interesses egoístas. E que trará a seu turno, sua própria formulação moral. Afinal, foi nesta sociabilidade que surgiu a ideia da mão invisível, que permitiria que o homem seguisse seu interesse egoísta, assegurando-lhe que seu próprio enriquecimento individual estaria garantindo o enriquecimento de toda a humanidade. É esta disputa entre o ser humano genérico e seus indivíduos que justifica uma separação/imbricação tal entre direito e moral, já que é necessária uma normatização externa e repressiva que regule a guerra de todos contra todos, efetivamente existente na sociedade civil. E isto pode trazer apontamentos interessantes para a explicação da existência no ordenamento jurídico burguês de normas que estabelecem interesses genéricos como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana não apenas como discurso ideológico, mas como princípio eficaz, ainda que sua eficácia permaneça no plano do dever ser, ou mesmo completamente adequada aos limites da reserva do possível burguesa. A figura do cidadão, apesar de especulativa, não tem origem, portanto, apenas da vontade dos filósofos. Ela representa a percepção de um gênero humano, de interesses genéricos e da necessidade efetiva de que estes interesses sejam satisfeitos.

A pesquisa marxista da filosofia do direito pode encontrar um campo rico de reflexões em temas como estes. A partir da inspiração trazida pela filosofia burguesa tradicional, criticada e garimpada em seu núcleo racional apresentar uma própria teorização marxista acerca das antinomias fundamentais da filosofia e daquelas especificamente importantes para a filosofia do direito. Tais reflexões, inevitavelmente, nos levarão ao debruçamento sobre um dos temas mais caros da filosofia jurídica: a liberdade. Entendê-la em suas relações com a necessidade de afirmação efetiva das potencialidades humanas, da realização do homem como um fim, da possibilidade de construção da vida humana de acordo com as normas postas pelo próprio gênero não estranhado, da superação da dicotomia entre valor e fato, significa, inclusive, entender os limites da própria pesquisa filosófica. Significa passar a se pôr em busca da transformação do mundo.