A verdadeira democracia deve ser fonte de inspiração para democracia real

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Originalmente escrito para a Revista Crítica do Direito. www.criticadodireito.com.br



A verdadeira democracia deve ser fonte de inspiração para democracia real


postado em 31/05/2011 16:43 por Revista Crítica do Direito - RCD

ELI MAGALHÃES



A partir da segunda quinzena de maio, o mundo pôde acompanhar a movimentação da juventude espanhola, que foi seguida pela classe trabalhadora daquele país. A praça Puerta del Sol, em Madrid, chegou às eleições do dia 21 de Maio abarrotada de manifestantes. O domingo do pleito ficou conhecido como o “dia da reflexão”. Em um edifício alto próximo à praça era pendurado um enorme cartaz com as palavras de ordem: “Abaixo o regime. O povo sem medo”.


A Espanha é um dos países denominados enquanto PIGS. Ao longo das últimas décadas, as políticas levadas à frente, em grande parte pelos socialistas do PSOE, vieram minando as garantias trabalhistas e sociais do país. Hoje, os índices de desemprego chegam à 20% da população. O que, inclusive, deve servir de reflexão para os brasileiros que ainda acreditam que a flexibilização das leis trabalhistas pode servir para o aumento do emprego formal. E no caso espanhol, observa-se tais taxas em um país em que 39% da população entre 25 e 34 anos possui ensino superior. A maior parte sem trabalho.


Com a crise mundial, e com uma explosão da bolha imobiliária espanhola, o governo de Zapatero, com seu governo apoiado por empresas multinacionais e banqueiros, tem levado à frente uma série de “reformas estruturais” que visam minar ainda mais os sistemas públicos de educação, saúde, previdência etc. De fato, uma das poucas garantias que ainda não foram tocadas é o seguro desemprego. O governo do PSOE, é apoiado, por outro lado, pelas burocracias sindicais da CC.OO e UGT, que fazem o trabalho sindical de refrear as mobilizações que se levantam contra os planos de austeridade.


Zapatero foi derrotado nas eleições do dia 21. O PP, partido tradicional da direita espanhola, saiu das eleições com 37% dos votos, contra 27% do PSOE. No entanto, a verdadeira força eleitoral do pleito foi a opção pela abstenção, 33% dos votos. Isto deve se explicar pela perda de confiança do povo em seu tradicional partido socialista, mas sem uma virada à direita. Há regiões em que o nível de abstenção é ainda maior, como entre os bascos, e na cidade de Barcelona, onde chegou a 47% dos eleitores.


Desde o 15 de maio, a população foi às ruas, com a juventude à frente, seguida pelo povo trabalhador. Organizada pela internet, a manifestação reuniu em Madrid algo em torno de 50 mil pessoas. Número não esperado por seus convocadores. Em Barcelona 15 mil, em Sevilha 6 mil. O governo adotou uma postura de repressão que resultou na prisão de 24 pessoas. Na noite do dia 16, o número de pessoas nas praças era ainda maior.


A manifestação do 15 de maio foi convocada pela internet com a seguinte palavra de ordem: “Democracia Real Já! Não somos mercadorias em mãos de políticos e banqueiros!”. Entre seus inimigos declarados, estavam tanto o governo do PSOE, quanto o PP e as burocracias sindicais da CC.OO e da UGT. A democracia se rebela contra o Estado e seus diversos agentes. Afinal, como diziam os manifestantes, “PSOE e PP. La misma mierda és”. A direita clássica do país focou sua campanha eleitoral acusando o PSOE como responsável pela crise econômica. No entanto, calou-se quanto às medidas impostas pelo FMI e pela União Europeia para sanar a crise. Em outras palavras, seus alvos são os mesmos do governo: a juventude e os trabalhadores.


Com os direitistas tendo 37% do votos das últimas eleições, o que se pode esperar em termos de mudança das políticas advindas do Estado? Basicamente nada para melhor, se não algo a piorar. É necessário refletir-se acerca de como a “democracia consolidada” da Espanha refletiu o descontentamento popular. Com 33% de eleitores recusando-se a votar em um país onde, inclusive, vigora um sistema de cláusula de barreira impedindo o surgimento de novos partidos, semelhante ao que se tenta implementar no Brasil, a direita sai vitoriosa para aplicar, justamente os planos de política econômica repudiados pela população em mobilização.


O grito por “Democracia Real”, se torna plenamente justificado em uma situação como esta. Mas o que de fato ele deve significar?


A democracia, na Espanha (e isto é algo comum ao resto do mundo), não tem servido para fazer com que as decisões políticas do país sejam tomadas efetivamente pelo povo. Pelo contrário, o Estado vem se comportando de maneira cada vez mais afastada deste, privilegiando interesses econômicos frente às carências apresentadas pela população. Daí a rejeição ao regime apresentada pelos espanhóis nestas eleições.


O que seria então uma “Democracia Real”, se não uma forma política em que o povo, livremente organizado, pudesse tomar, por si, as decisões acerca das prioridades de seu governo? Seria portanto, algo mais profundamente enraizado nas forças da população do que a “democracia existente”. O caso da Espanha obriga a todos a repensar as formas políticas as quais estão submetidas as grandes democracias do mundo. E a semelhança das manifestações espanholas contra o regime, em suas praças, com as manifestações egípcias contra uma ditadura escancarada é, pelo menos, curiosa.


Em sua luta contra a monarquia alemã, Marx declarou que “a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado … O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal … daí que na verdadeira democracia o Estado político desaparece. O que está correto, considerando-se que o Estado político, enquanto constituição, deixa de valer pelo todo”.


A preocupação do autor destas palavras era recuperar as forças sociais sugadas pelo Estado monárquico para o seu real detentor, o “povo concreto”. É dizer que, ao invés de o povo servir ao Estado em seus desígnios, este último é que deveria representar os assuntos de interesse do primeiro. O Estado deveria, portanto, ser entendido apenas como um dos momentos da vida humana, e não como aquele que possui a prioridade sobre todas as outras partes, e por isto com legitimidade de tomar suas decisões de forma afastada e, muitas vezes, contrárias à vontade popular. A verdadeira democracia, portanto, seria a forma política em que o Estado deixa de valer por todos, e passa a se submeter às necessidades humanas de seus súditos. Ele se torna o homem objetivado. O homem valendo como princípio universal de suas decisões.


A esta altura, Marx não havia percebido definitivamente, como fará mais tarde, que as diversas lutas no seio da sociedade civil não permitem que se possa falar em um povo concreto. Antes, é necessário perceber a sociedade em classes sociais sustentadas em seus próprios interesses e dividas pelo processo produtivo capitalista e pela propriedade privada. Ele chegará a esta conclusão ao notar que seu projeto de uma verdadeira democracia não poderia ser cumprido enquanto o próprio povo concreto fosse entrecortado pelas contradições que são postas por estas condições. Em uma verdadeira democracia não poderia ser cabível a exploração do homem pelo homem. Sem a superação desta, os desejos das elites economicamente dominantes continuariam a afastar as forças populares de sua própria gestão. O Estado continuaria sendo um ente afastado e antagônico ao povo, agora entendido como as classes trabalhadoras.


Isto explica porque as modernas democracias, baseadas na exploração do trabalho assalariado, na produção capitalista e na propriedade privada, continuam sem representar a vontade popular. Ao contrário, o Estado de hoje, se não mais serve ao monarca soberano, serve, por mais democrático que se apresente, à ditadura dos grandes bancos e das grandes empresas multinacionais. Serve à ditadura das grandes agências do capital como FMI, Banco Mundial etc., principais responsáveis pela crise e pelos planos de austeridade que hoje pesam sobre o mundo europeu e os outros continentes.


Ao perceber as bases da sociedade capitalista, Marx foi transitando, mantendo constante apenas a necessidade da revolução, de seu desejo pela verdadeira democracia, para seu programa em direção ao comunismo. Superar a propriedade privada se torna o requisito para superar o afastamento do poder político da classe trabalhadora. O requisito para recuperar as forças sociais roubadas pelo Estado, na constituição de um regime político em que o povo decida como se organizar e como suprir suas necessidades materiais. Neste entremeio, a revolução socialista se torna uma necessidade para chegar-se à verdadeira democracia, aqui, com um conteúdo distinto, muito mais próximo à ideia de comuna (como em Paris) do que de Estado.


A spanishrevolution, declarou-se, desde de início, muito mais próximo do que se pode pensar da verdadeira democracia, ao colocar que os espanhóis não são mercadorias nas mãos das multinacionais e dos banqueiros. O desejo é um regime político radicalmente democrático e um regime econômico alternativo ao liberalismo selvagem que enfrentam. Se eles perceberem a necessidade de superar as bases econômicas de sua democracia atual, estarão no caminho certo para fundar sua “Democracia Real”. No Brasil, as manifestações populares seguem sendo reprimidas brutalmente pelo Estado Democrático de Direito, tal qual ocorreu na Marcha da Maconha em São Paulo. Isto forçou os manifestantes a convocarem uma Marcha da Liberdade. Estaremos próximos de seguir o exemplo espanhol? Estaremos próximos de convocar uma Marcha da “Liberdade Real”?