Uma teoria da modernidade e a teoria discursiva do direito (parte 2)

domingo, 21 de fevereiro de 2010

    1. Mundo da vida e sistema: uma teoria da modernidade

Às questões supramencionadas conecta-se, ainda, uma importante categoria teórica da Teoria do Agir Comunicativo. A essa altura, fica claro o valor que possui, para todo este quadro teórico, a intersubjetividade. Habermas afirmará:


El mundo sólo combra objetividad por el hecho de ser reconocido y considerado como uno y el mismo mundo por una comunidad de sujetos capaces de lenguaje y acción. El concepto abstracto de mundo es condición necesaria para que los sujetos que actuán comunicativamente puedan entenderse entre sí sobre lo que sucede en el mundo o lo que hay que producir en el mundo.1


Dessa afirmação pode-se apreender a importância da categoria da intersubjetividade para a razão comunicativa, enquanto substitutiva da objetividade utilizada por uma perspectiva ontológica de filosofia. E o autor continuará sua formulação até chegar ao ponto em que afirma:


Con esta práctica comunicativa se aseguran a la vez del contexto común de sus vidas, del mundo de la vida que intersubjetivamente comparten. Este viene delimitado por la totalidad de las interpretaciones que son presupuestas por los participantes como un saber de fondo.2


O mundo da vida fecha, por assim dizer, toda a formulação anteriormente mencionada acerca da racionalidade processual, da verdade, da argumentação e da Ética do Discurso. Como pano de fundo das interações comunicativas, seria o compartilhamento de interpretações nele contidas, por parte dos participantes de uma situação de fala, que permitiria a mútua interpretação de suas pretensões de validade. Durante a atividade argumentativa, os participantes partem sempre de uma mesma linguagem (ou linguagens que possam ser traduzidas) e conceitos semelhantes acerca de significados dos proferimentos por eles externados.

Sérgio Paulo Rouanet explica:


O mundo da vida é o lugar das certezas pré-reflexivas, dos vínculos que nunca foram postos em dúvida. Ele tem três componentes estruturais: cultura, sociedade e personalidade. A cultura é o estoque de saber da comunidade que contém os conteúdos semânticos da tradição, onde os indivíduos se abastecem dos modelos de interpretação necessários ao convívio social. A sociedade, strictu sensu, é composta de ordenamentos legítimos pelos quais os membros da comunidade regulam suas solidariedades. A personalidade é o conjunto de competências que qualificam o indivíduo para participar da vida social.3


Dessa maneira, o mundo da vida permite a interação entre os sujeitos capazes de fala e ação. Permite-o a partir do processo dialógico em que as pretensões de validade tomarão uma parte dele, tematizando-o e construindo novos consensos a partir de sua própria problematização4. É, então, o locus da integração social, possibilitada pelo agir comunicativo, através do medium da solidariedade.

A teoria do agir comunicativo, esclarece Habermas, não é, no entanto, uma meta teoria5. Ela procura estabelecer-se enquanto uma interpretação acerca da realidade social à qual está ligada, esclarecendo sua construção e, concomitantemente, suas patologias.

A esse projeto é, então, anexado o conceito de sistema. Esse conceito é formulado por Niklas Luhmann em sua teoria sociológica entendendo que “todo contato social é entendido como sistema, inclusive a sociedade enquanto conjunto da consideração de todos os contatos possíveis”6. Apesar das críticas dirigidas a Luhmann, que não poderão ser discutidas no âmbito do presente texto, Habermas irá absorver seu conceito de sistema na tentativa de esclarecer o surgimento da Modernidade.

Segundo ele, a Modernidade surgiria a partir do momento em que as formas de interação feudais, baseadas em determinadas conformações do mundo da vida, não mais respondiam às necessidades da integração social. Com isso, passam a se desenvolver de maneira mais proeminente os subsistemas da economia e do Estado. Esse desenvolvimento irá adquirir um caráter de desacoplamento entre sistema e mundo da vida7.

A partir desse desacoplamento, estão dadas as possibilidades para acontecer o que Habermas denomina de colonização do mundo da vida. As implicações desse processo, na obra habermasiana, são de grande significação, no entanto, pelos limites do presente trabalho nem todos os seus nexos poderão ser explorados.

Os imperativos dos sistemas passam a invadir as formas de integração do mundo da vida baseadas na solidariedade. Através do medium dinheiro (Economia) e do medium poder administrativo (Estado), os subsistemas passarão a ter uma relação contraditória com o mundo da vida, por um lado, destruindo antigas tradições e formas de solidariedade em um processo doloroso e que, em muitas vezes, encontra resistências. Por outro, forçando a construção de interações diversas, e que, no que concerne à Modernidade, representam formas superiores de interação em relação à sociedade Feudal8.

No entanto, nessa quebra da solidariedade do mundo da vida residem, também, as diversas patologias sociais presentes na vida moderna. A colonização do mundo da vida representa, dessa maneira, uma releitura de Habermas acerca da teoria da racionalização social de Max Weber que, no entanto, não a re-afirma como um todo. Reconhece nela acertos, para explicar as patologias sociais. Porém, ao mesmo tempo reconhece os avanços que essa colonização pode vir a trazer9. O combate às patologias, buscando a preservação das interações baseadas na solidariedade do mundo passa a ser o programa político de uma teoria crítica fundada na racionalidade comunicativa. Nesse âmbito, para o autor, a tese da luta de classes encontra-se ultrapassada pela tese da preservação do medium solidariedade frente à colonização do mundo da vida pelos imperativos do sistema.

1 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: Racionalidad de la acción y racionalizaión social. Vol I. Madrid: Taurus, 1999. p. 30. “O mundo só cobra objetividade pelo fato de ser reconhecido e considerado um e o mesmo mundo por uma comunidade de sujeitos capazes de linguagem e ação. O conceito abstrato de mundo é condição necessária para que os sujeitos que atuam comunicativamente possam entender-se entre si sobre o que sucede no mundo ou o que há que produzir no mundo”. (Tradução livre).

2 Idem, ibdem. pp. 30-31. “Com esta prática comunicativa se assegura o contexto comum de suas vidas, do mundo da vida que intersubjetivamente compartilham. Este vem delimitado pela totalidade das interpretações que são pressupostas pelos participantes como um saber de fundo”. (Tradução livre).

3 ROUANET, Sérgio Paulo, apud MOREIRA, Luiz. Fundamentação do direito em Habermas. 3ªEd. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 44.

4 HABERMAS, Jürgen. op. cit. p. 119.

5 Idem, ibdem. p. 9.

6 REESE-SCHÄFER, Walter. Compreender Habermas. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. pp. 55-56.

7 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa: Racionalidad de la acción y racionalizaión social. Vol II. Madrid: Taurus, 1987. p. 402.

8 ARAGÃO, Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 173.

9 Idem, ibdem. p. 177.