Crime, política e Movimentos Sociais.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Recentemente, tem crescido o número de notícias que tratam de conflitos envolvendo movimentos sociais e forças policiais. As últimas que podemos puxar da memória dizem respeito aos estudantes de Santos, desocupados pela polícia da reitoria em que se encontravam pacificamente, e a truculência com a qual a PM do Rio dispersou a manifestação contra a 10ª rodada de leilões das jazidas de petróleo promovida pelo governo Lula. É possível, ainda, citar outras ocasiões em que o Estado moveu-se contra os trabalhadores e estudantes que promoviam momentos de contestação neste ano. Como maior exemplo disto, lembremos da ação ajuizada pelo Ministério Público gaúcho contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST).

Estes exemplos constumam apontar tendências aparentemente gerais na disputa ideológica cotidiana. A criminalização dos movimentos sociais parte de uma articulação entre discurso e ação estatal na tentativa, não apenas de sua desarticulação política direta, pondo fim em suas atividades, mas, ainda, de legitimação desta desarticulação, seja ela tão truculenta quanto for. Ou seja, não basta simplesmente calar os manifestantes. Esta imposição do silêncio e do consenso deve, além de tudo, apresentar-se da forma mais aceitável possível, não importando os meios utilizados para tal.

De maneira muito introdutória, posto que não empreendi nenhum estudo mais sistemático acerca desta problemática, parece-me que o processo de criminalização dos movimentos de contestação da ordem seguem, em geral, dois passos: a) a construção de uma concepção que dá, ao crime, uma realidade natural e negativa; b) a identificação de qualquer atitude de contestação ou conduta desviante com atividades criminosas.

Em um primeiro momento, tenta-se, por todas as vias ideológicas disponíveis, construir-se a legitimidade da ordem vigente, abafando-se, ao mesmo tempo, quaisquer manifestações de dissenso. A criação de um clima de entendimento em torno das instituições postas envolve diversos aspectos desde a legitimação do sistema democrático burguês, das leis etc. Dentro deste espectro, é cada vez mais notável a intenção de conferir existência natural ao fenômeno do crime. Este passa a ser tratado como um ser que, existindo de forma independente, é evidentemente algo nocivo a qualquer organização societal.

Esta movimentação de legitimação da ordem possui, como um de seus momentos fundamentais, a legitimação da violência estatal. A organização da violência, em torno do Estado, é suprida, por um lado, a partir da aceitação do monopólio da força física nas mãos da institucionalidade, que deveria utilizá-la de maneira racional. Por outro, a deslegitimação do uso da força por outros pólos sociais. Com isto, o crime e a violência passam a constar como elementos sutilmente diferenciados. Não será negativa, por exemplo, a violência policial utilizada no combate ao crime, desde que racionalmente. Assim organiza-se o discurso do Direito Penal Liberal.

Mas o que é o crime, afinal? A própria teoria do Direito Penal pode dar contribuições iteressantes na resposta desta pergunta. O crime, em sua dimensão analítica, é uma figura jurídica constituída por três características, que, em um resumo um tanto deformador, são as seguintes: a) a tipicidade, adequação da conduta à proibição legal; b) a ilicitude, caracterização da conduta como contrária à proteção dos valores juridicamente assegurados; c) a culpabilidade, a capacidade jurídica que o agente deve possuir para o cometimento do delito, por exemplo, ser maior de 18 anos. Sem a conjunção destas três dimensões, a conduta não poderá ser considerada juridicamente como um crime.

Assim, no que diz respeito especificamente à dimensão da tipicidade, se o ato do qual quer-se discutir a natureza criminosa não se adequar inteiramente à conduta proibida pela lei penal, não haverá crime. Isto deve nos levar a uma reflexão mais profunda. Se apenas as condutas em contradição com a lei penal podem ser consideradas criminosas é necessário que seja discutida, para que seja encontrada a origem do fenômeno criminoso, a origem das próprias leis que o instituem. Ora, é imperioso perceber que, em ausência de leis penais que tipificassem condutas criminosas, não haveria nada a ser considerado crime. Em outras palavras, só existe delito onde existir direito que pronuncie o que é passível de ser punido pelo Estado.

Em contradição a esta análise da ciência penal, tenta-se criar uma espécie de aversão natural a qualquer coisa que apresente-se como crime. Esta é uma atitude que vem muito a calhar frente à necessidade de manutenção do status quo, visto que mudanças sociais radicais estiveram historicamente ligadas a uma contestação mais profunda da ordem tanto em sua dimensão política, quanto em sua dimensão mais marcadamente jurídica. É comum o discurso midiático que procura incentivar políticas de Lei & Ordem, do combate à criminalidade a qualquer custo etc. Eles baseiam-se, em última instância, na premissa, óbvia aos que proferem tal discurso, de que o crime é algo naturalmente ruim.

Mas se o crime existe apenas onde existem leis criminais, deve, então, ser posto o seguinte questionamento: de onde vêm as leis criminais? Ora, a pergunta é facilmente respondida. Elas vêm de onde vêm todas as outras leis. Do processo legislativo comum às democracias republicanas modernas. As leis são, em última análise, frutos de escolhas políticas instituicionais. Definem quais serão os fatos importantes para o Direito e, ao mesmo tempo, quais valores serão tutelados e garantidos pelo Estado.

Isto nos leva a um problema muito mais profundo. O Estado, em sua acepção moderna, e a cidadania, faces de uma mesma moeda, nascem junto aos valores que fundam a sociabilidade capitalista. Desta forma, como diria Engels, o Estado não é nada senão "o balcão de negócios da classe dominante". Desta maneira, os processos instituicionais aos quais estão submetidas as escolhas políticas da sociabilidade burguesa, ainda que possam, de forma contraditória, favorecer em determinada, e sempre limitada, medida as classes subalternas, nunca se colocará em declarada contradição com o fundamento último do sistema sócio-metabólico do capital. Desta maneira, o crime, assim como grande parte das outras leis, será uma escolha política, na maior parte das vezes tomada pelas classes dirigentes. O que significa dizer, o crime não é um fenômeno natural, e sim político. Mais, não será necessariamente algo nocivo à sociedade de maneira abstrata. Será algo nocivo à manutenção do cotidiano da sociabilidade em questão. Significa dizer: o crime em seus nuances mais ou menos contestadores da ordem vigente não é necessariamente nocivo aos seres humanos, apesar de poder sê-lo.

Vários episódios históricos nos trazem, hoje, personagens, muitas das vezes considerados heróis, que em sua época foram tidos e até condenados como criminosos pelo poder constituído vigente. Podemos citar Zumbi dos Palmares, Tiradentes, Calabar, João Cândido, Carlos Prestes, Olga Benário, Graciliano Ramos etc., apenas para memorar alguns nomes da história brasileira. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer que o Estado e a ordem jurídica que os considerou desta forma era tida tão legítima, à época, quanto a que vige atualmente.

Desta maneira, o crime será um elemento histórico, jurídico, político e social neutro. A classe dominante também é passível de ser considerada criminosa, apesar de episódios assim serem mais raros. Exemplificativamente podem-se citar a criminalização de condutas nazi-faccistas na maioria das democracias após a Segunda Guerra Mundial, assim como uma tendência atual à perseguição, ainda que somente jurídica, dos "crimes de colarinho branco". O fato real de que, no tratamento de delitos como estes, as instituições estatais são mais "frouxas" do que o normal é assunto para outro texto, já que aqui tento construir uma análise mais voltada para o fenômeno do crime em-si, e não do Estado e do Sistema Penal.

Tendo construído a imagem do crime como um elemento naturalmente nocivo passa-se ao próximo estágio da criminalização política: a tentativa de adequação de condutas dos movimentos de contestação a figuras típicas da lei penal. A tentativa de deslegitimação da contestação à ordem vale-se, como não poderia deixar de ser, da legitimidade constritora desta mesma ordem. A freqüente tentativa de identificação e rebaixamento de manifestantes e ativistas políticos a meros "vândalos" comuns é uma demonstração muito forte desta tendência.

Com isto, a ordem vigente beneficia-se, pelo menos, de três maneiras diferentes. Em primeiro lugar, encontra uma brecha legal, posto que o Estado de Direito Moderno só pode agir (publicamente) de acordo com a lei, para reprimir as manifestações mais radicais de descontentamento político. Em segundo lugar, valendo-se do construto da figura criminosa naturalmente nociva, desconstrói a legitimidade social que estes movimentos de contestação geralmente possuem taxando-os como violentos (já que apenas a violência estatal é legítima), ou seja, criminosos. Por último, esta identificação da ação política com a criminalidade comum, de massas, cotidiana, contribui para a constituição de uma prática criminosa docilizada.

A atividade política, por vezes, será realmente criminosa. Os momentos de maiores enfrentamentos históricos levaram a grandes desconsiderações e deslegitimações da ordem jurídica, fazendo com que atos políticos estivessem em pleno desacordo com as leis em vigor à determinada época. É o caso, por exemplo, mas não somente, de grandes revoluções políticas como a Francesa e a Russa. Rememore-se, também, as atividades de grupos de esquerda durante a ditura militar no Brasil com assaltos a bancos e seqüestros de figuras eminentes, assim como a tortura implementada pelas forças policiais da repressão estatal, que apesar de admitida jamais foi tida como lícita. Desta maneira, de formas variadas, a ordem vigente procurará, sempre, identificar esta forma de contestação política violenta à criminalidade comum.

Com isto, contribui-se para a criação e reprodução de uma criminalidade docilizada. Apesar de incômoda, a violência urbana cotidiana, na maior parte das vezes, não representa uma contestação mais sistemática ao status quo. Mesmo representando um fator de acréscimo do desconforto das civilizações modernas assaltos, seqüestros, o tráfico de drogas, homicídios etc., não questionam as bases reais do poder na sociabilidade vigente em sua centralidade. Para a classe dominante, é muito mais confortável que os criminosos estejam preocupados em assaltar bancos para consumir bens mercantis, do que para financiar atividades para-militares revolucionárias. Desta maneira, a identificação de atividades políticas radicais à criminalidade cotidiana, organizada ou não, presta um belo serviço no sentido de aprofundar, ainda mais, o caráter naturalmente nocivo do crime, em desconformidade com o seu caráter mais acentuadamente político.

Por esta tendência à tentativa de identificação de atividades políticas a atividades criminosas é que vemos situações como acusações de depredação de patrimônio público (crime de dano), desacato à autoridade e outros crimes comumente utilizados para legitimar a ação estatal sobre os movimentos políticos mais contestadores, mesmo quando estas condutas jamais aconteceram. Exemplo mais caricatural, foi a tentativa de indentificação, por parte do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul, de escolas do MST a células de formação terrorista de crianças sem-terra.

Desta forma, estas considerações introdutórias apontam para algumas conclusões tão preliminares quanto elas. Em primeiro lugar, o crime não pode ser tratado como uma realidade natural independente. Esta postura, comumente utilizada no dicurso criminalizante atual, apresenta-se em total contradição com a própria Ciência do Direito burguesa, que propugna pelo reconhecimento jurídico unicamente daquilo que está posto enquanto direito na sociedade moderna. Tal discurso mais se parece com um retorno ao direito natural feudal e clássico, do que com o reconhecimento do direito positivo burguês advindo com a modernidade.

Não é, portanto, algo naturalmente nocivo, sendo fruto de uma escolha política, só podendo existir enquanto contradição ao direito. O que significa dizer que, de uma maneira geral, cai por terra a teorização de que apenas a violência estatal pode galgar de legitimidade. Não se quer com isto propugnar pela legitimidade jurídica da violência política. Muito menos afirmar que, apenas violentamente pode-se fazer política. Mas, apenas, afirmar que, ao longo da história, as mais variadas formas de atividade política chegaram, por diversas vezes, a encontrar pontos de intersecção com a violência, principalmente em momentos de rupturas políticas mais radicais. Ao mesmo tempo, o Estado e o Direito, como dois braços de um mesmo corpo tentarão manter a cotidianidade da sociabilidade vigente. Atividade para a qual, a criminalização dos movimentos sociais demonstra-se de importância capital.








Qual o cheiro da mercadoria?

terça-feira, 16 de dezembro de 2008


O Cheiro do Ralo (2007), é o segundo produto da parceira do diretor Heitor Dhalia e do quadrinista Lourenço Mutarelli. Em 2004, o cineasta pernambucano lançou Nina, que possuía cenas de animação preparadas pelo desenhista paulista em um filme com forte influência de Dostoievski (Crime e Castigo). Desta vez, no entanto, o roteiro da obra é uma adaptação do primeiro romance de Mutarelli, que possui o mesmo título da peça cinematográfica.

O romance apresenta traços inovadores na forma de como contar a história. Com uma proposital confusão entre narrador e personagem, diálogos e descrições, mais parece que o leitor possui em suas mãos uma história em quadrinhos tradicional. As frases são curtas e procuram descrever o máximo possível da percepção do protagonista nas diversas situações em que se encontra. A adaptação para as telas não poderia ter um outro resultado. Uma sequência de cenas lentas, com diálogos acelerados, de frases encolhidas, lembrando um pouco do Teatro do Absurdo. A direção de arte preocupou-se em aprofundar o sentimento do estranho no filme, construindo cenários e figurinos anacrônicos e pouco convencionais. O Cheiro do Ralo poderia ser até elencado como um revival do cinema Udigrudi brasileiro em razão da história que resolve contar. Porém, ao contrário das versões tupiniquins do cinema Trash americano, o filme de 2007 parece guardar um sentido maior em seu roteiro do que a simples construção de uma história quase sem pé nem cabeça.

Esta também é a segunda participação do ator Selton Mellon em um filme de Dhalia. Se em Nina interpretou o namorado da personagem principal, em O Cheiro do Ralo encarna Lourenço, o dono de uma loja de antigüidades que vive da compra e venda de artigos e do lucro daí advindo. A adaptação ao cinema da obra de Mutarelli encontra poucas diferenças de sua versão original, a maioria não importante para o essencial da história. Uma destas, é a imagem física do protagonista da obra. Lourenço (não por acaso, homônimo do escritor da história) é careca, magro e alto, o que o faz ser freqüentemente confundido com o personagem de determinado comercial da TV (provavelmente aquele de limalhas de aço). Mutarelli também participa como ator na película encarnando o segurança da loja de antigüidades, então basta fazer uma simples comparação entre ele e Selton. O ator mineiro é realmente diferente da descrição física original do personagem, mas conseguiu encarná-lo psiquicamente de uma maneira bastante convincente.

Lourenço vive, dia após dia, do lucro que retira de sua loja. Desta forma, acaba encontrando todo o tipo de pessoas que lhe levam os mais variados artigos, sempre contando uma história acerca daquilo que querem vender, na tentativa de valorizar o objeto. Para o dono da loja, é claro, as histórias e os sentimentos dos vendedores de nada valem para a realização de seus objetivos. Em uma cena memorável Lourenço pede ironicamente ao homem que tenta vender-lhe a caixinha de música que está em sua família há anos que escreva as histórias dela em uma folha de papel, para ele dar de brinde ao seu comprador.

Num de seus raros momentos de lucidez Lourenço consegue explicar o que o fez ter esta natureza. No início de sua carreira dava ouvidos às histórias dos vendedores, mas tinha que deixar isto de lado, tinha que comprar as coisas pelo menor preço possível e vendê-las pelo maior para conseguir sobreviver. Com o tempo, tornou-se insensível aos outros, incapaz de se relacionar com qualquer coisa que não fosse um objeto. Pouco lhe importa o significado daquilo que compra para aquele que o está vendendo. Aliás, pouco importa o valor-de-uso da coisa. Este está completamente submetido ao seu valor-de-troca. Para Lourenço, as outras pessoas são apenas meios para o atingimento de seus objetivos. Não é capaz de fazer nada pelos outros e ele mesmo diz que "nunca gostou de ninguém".

O roteiro da história corrobora com esta situação e aprofunda este sentimento no espectador atento. Todos os outros personagens, além de Lourenço, são identificados por sua função: o segurança, a secretária, o homem do violino, a viciada, a noiva etc. O protagonista tem a característica de transformar a todos em objetos, para que possa manter ligações com eles. Não consegue, aliás, perceber a diferença entre as coisas e os homens. Daí, sua loucura o leva à busca de um pai em meio às tranqueiras que lhe vendem (um olho, uma perna mecânica) e a se apaixonar por uma bunda.

Na lanchonete em que costuma comer conhece a bunda. Uma garçonete da qual ele não consegue, sequer, aprender o nome é a dona do seu novo objeto de desejo. A garota passa a se interessar verdadeiramente pelo homem, porém este é incapaz de levar a frente qualquer relacionamento baseado no afeto. Para que possa ter seu desejo atendido precisa transformar a garçonete em coisa, comprá-la e dispôr dela da forma como desejar. De nenhuma outra maneira interessa-lhe manter contato com a mulher.

O desenrolar do filme demonstra, de maneira caricatural, uma realidade à qual estamos todos submetidos. Viver sob um sistema produtor de mercadorias nos faz enxergar, no mercado, a única forma de apropriação de riqueza, ou seja, dos bens necessários à nossa sobrevivência e reprodução social. Com isto, o relacionamento entre os seres humanos é subordinado ao relacionamento que estabelecem com a mercadoria. Compramos os objetos sem nos importarmos com o que está por trás deles como se eles "fossem sozinhos aos supermercados". A esta relação que os homens cultivam com as coisas produzidas no sistema capitalista, ao invés de cultivá-la entre si, é que se dá o nome de fetichismo da mercadoria. Esta, a mercadoria, se demonstrou como a categoria abstrata que possibilitou a troca de valores no sistema do capital. Assim, somos capazes de submeter o valor-de-uso das coisas ao seu valor-de-troca. Isto porque, a própria forma de organização da produção submete a confecção de coisas úteis à produção de coisas rentáveis.

A partir daí, a forma da mercadoria consegue expandir-se pelas diversas esferas da vida social. Não apenas os produtos que saem das fábricas são transformados em artigos de venda. Junto a eles, são submetidos a esta forma de apropriação a maior parte das outras dimensões da existência humana. Mais do que comida, água e roupas, nos é possível comprar, ainda, educação, arte em geral, diversão, sexo, ciência etc. Todos devidamente transformados em mercadoria, para permitir o seu câmbio na sociedade em que vivemos, posto que assim, seus fornecedores também participarão da apropriação da riqueza através do mercado.

No fim, nos encontramos às voltas de uma produção cada vez maior de objetos, em sua maioria supérfulos, em uma forma societal irracional da sua origem às suas conseqüências. Tudo isto nos leva a uma vida de insatisfação e esvaziada de sentido. Para Lourenço, isto vai ser representado pelo cheiro do ralo do banheiro de seu escritório. Este é o seu sinal de que tem alguma coisa errada com o que anda fazendo. Por causa do cheiro do ralo ele não consegue descansar, não consegue ser feliz. De fato, algo cheira mal em nosso mundo e, em seu estilo caricatural, o filme faz com que este cheiro ganhe existência natural e represente a suspeita do personagem de que alguma coisa não vai bem. Não por acaso, apesar do incômodo que lhe causa, é possível ver Lourenço acostumar-se a ele, conviver com ele e, em determinadas situações, até procurá-lo, como quando, após pagar por sexo a uma mulher, ele rasteja até o ralo para sentir seu odor.

Se a arte "é uma mentira que nos faz ver a verdade", O Cheiro do Ralo é uma boa peça de arte por conseguir traduzir, em uma linguagem universal, uma particularidade de nossas vidas. É impossível odiarmos Lourenço pelo que ele se tornou. Ele é apenas um exageiro de sinceridade da forma como nós mesmos nos comportamos cotidianamente. Através do humor negro e da via cinematográfica, o filme consegue nos trazer à tona aspectos profundos do contexto histórico em que nos encontramos. Ao contrário do que a maioria dos que assistiram ao filme costumam dizer em seus comentários, O Cheiro do Ralo não é uma crítica ao simples consumismo da vida moderna. É uma crítica a um aspecto essencial do próprio modus operandi da vida moderna: a troca de mercadorias.


Também já chorei pelo Vasco...

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

É claro que este comentário remonta-se a uma notícia velha. O jogo do Vasco contra o Vitória aconteceu no domingo passado. Mas como, de qualquer forma, eu nem tinha este blog ainda, vou fazê-lo ainda que atrasado.

Depois da verdadeira chicotada psicológica, para lembrar a expressão daquele velho jogo português de simulação de gerenciamento de equipes de futebol, estava lendo algumas notícias sobre o rebaixamento do Vasco da Gama. Não entendo nada sobre o esporte. Definitivamente, não sou competente para comentar esse ou aquele lance do jogo, a campanha do time, a trajetória dos jogadores etc. Sou um zero à esquerda neste quesito. Mas isto não me impede de guardar certa emotividade em relação a um clube.

Por isto mesmo, nem me meto a discutir a má fase da equipe, os seu problemas técnicos, e a zaga que eu odeio do fundo do peito. A verdade é que há um tempo não a vinha acompanhando. Um misto de acúmulo de afazeres com certo desgosto. De fato, mais desgostos. A reiteração, ano após ano, da direção corrupta do Vasco foi o principal deles. Mas é que no gramado a coisa também não ia muito bem. Não me levem a mal. Não quero ser confundido com aquele torcedor que só aparece quando o time está ganhando, mas perder o Carioca todo ano na final para o Flamengo não diverte ninguém. Certo que isso não é motivo para abandonar o time. E, realmente, não foi o meu.

O que me chamou atenção nas notícias que li sobre o jogo de domingo é que, salvo raras exceções, elas não se esqueciam de comentar o choro do Pedrinho no final da partida. Para mim, torcedor recente do Vasco da Gama, se for levada em consideração toda a história do clube, esta não deixou de ser uma cena marcante.

Pedrinho foi revelado pelo Vasco em 1996. Mais ou menos a época em que comecei a acompanhar o time mais conscientemente, claro que sempre defasadamente (tinha nove anos de idade). Participou de um dos melhores plantéis do time que pude ver jogando, em 1997, quando foi campeão do Brasileirão naquele jogo fantástico contra o Palmeiras. Em 2000, também estava presente no título da João Havelange, bem como na derrota para Corinthians no Mundial da Fifa. Em minha opinião, não tem outra denominação: é, sem dúvidas, um símbolo da torcida vascaína dos últimos tempos. Claro que não se pode comparar a um Roberto Dinaminte, ou ao goleiro Barbosa. Mas entre os torcedores mais jovens, não são muitos os que não guardam, pelo menos, certa simpatia pelo jogador. Não é a toa que, depois de contundido em um jogo contra o Cruzeiro (1998), Pedrinho teve o costume de encontrar as portas do Clube abertas para o seu retorno.

Por tudo isto, acredito que as lágrimas do meio-campista guardem uma sinceridade profunda em relação à situação do Clube. Definitivamente, o rebaixamento não poderia vir em uma hora pior. A recente reviravolta política do Vasco, afastando a velha gestão Eurico Miranda, e colocando, em seu lugar, o craque e ídolo Roberto Dinamite, faz com que a derrota seja uma realidade ainda mais difícil de ser engolida. Durante o jogo era possível ouvir a torcida depositando a culpa no velho presidente. O comentário do jogador Madson, diga-se de passagem, o melhor do elenco vascaíno no último ano, durante sua saída de campo, entre lágrimas, deu a entender que concordava com a platéia. Não vi, até agora, nenhuma palavra que contradiga tudo isto. Principalmente em relação ao grande consenso: Dinamite não merecia. Muito menos Eurico Miranda, que não faz jus a nenhuma oportunidade que seja de conseguir crescer politicamente outra vez.

De minha parte, não foi desta vez, mas também já chorei pelo Vasco. Ora, uma das mais emocionantes partidas que assisti foi justamente Vasco e Corinthians, em 2000, na final pelo Mundial da Fifa. Nunca fui fanático por futebol, nem imaginei que poderia chegar a derramar lágrimas por ele. Mas ver o Helton agarrando o pênalti do Marcelinho Carioca que definiria o jogo se entrasse foi demais. É claro que a decepção de ver o Edmundo perder a cobrança seguinte foi mais avassaladora ainda. Sobre minha semi-greve ao futebol? Bem, está aí o motivo. Reclamando de barriga cheia, é claro, já que éramos Tetra no Brasileiro em cima do São Caetano. Coisa de torcedor, o que eu posso dizer?

De qualquer maneira, nunca deixei de acompanhar o Vasco da Gama completamente. Sempre estive preocupado de relance com sua situação nesta ou naquela competição. Acredito que o clube está entrando em uma nova fase e sou mesmo daqueles que põe fé no Dinamite. Sua chegada à presidência foi um dos motivos que me fez voltar a ser mais assíduo à torcida do time. É triste e sofrido o que aconteceu. A Primeirona é o lugar de direito da equipe brasileira pioneira a possuir um título internacional (Sul Americana, 1948) e a permitir jogadores negros entre seus escalados. Mas o Vasco é o time da virada, não é mesmo? Vejamos 2009.


Sobre a morte do Socialismo:

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Estava lendo este texto outro dia. Comenta aspectos interessantes a serem discutidos antes de ser esculpida a lápide do marxismo.


Vou procurar apontar alguns elementos que determinaram a derrocada da URSS e da equivocadamente chamada "experiência socialista" intentada neste século. Vou fazê-lo recorrendo a duas idéias centrais, deixando de tratar de inúmeras questões relevantes, mas não determinantes, que a brevidade deste texto não permite tratar:

1) Ao contrário do que apregoa a
irrazão hoje dominante, a experiência da URSS não concretizou valores essenciais do pensamento de Marx, mas acabou por efetivar a negação aguda dos elementos fundantes de seu pensamento.

2) As sociedades pós-revolucionárias
não conseguiram constituir-se enquanto sociedades socialistas; a ruptura iniciada em 1917 não foi capaz de romper com a lógica histórico-mundial do capital, apesar de contemplar, no âmbito dos recortes nacionais, dimensões anticapitalistas.

Comecemos pela primeira. São conhecidas as idéias de Marx a respeito das possibilidades de rupturas anticapitalistas: estas encontrariam solo fértil somente se as revoluções socialistas atingissem uma dimensão e uma processualidade universalizantes, a partir de um "alto grau de desenvolvimento" dado num "plano histórico-mundial". Sem isso, o "comunismo local", impossibilitado de desenvolver-se como "força universal", seria sufocado pelas próprias "forças do intercâmbio" mundial. Muito tempo depois, indagado sobre a possibilidade da revolução na Rússia, Marx acrescentou: pela "inserção no mercado mundial onde predomina a produção capitalista", a revolução russa poderá ser "ponto de partida" para o Ocidente, "de modo que ambas se completem".

Sabe-se que não foi esta a trajetória russa: uma revolução
singular, ocorrida num país atrasado, não teve como desdobramento a ocidentalização da revolução. Com as derrotas das revoluções do centro, especialmente a alemã, a revolução russa começa a vivenciar a tragédia. Se com Lenin, Trotsky e Bukharin, eram visualizadas dimensões desta tragédia, com Stalin a revolução russa atingiu a absurda condição de modelo que deveria ser seguido pelas demais revoluções. Daí para a também nefasta tese staliniana do socialismo num só país, e seus vários e cada vez mais equivocados desdobramentos, como o do socialismo nos países coloniais, dependentes, atrasados etc., foi um passo muito rápido. Objetivamente isolada, a revolução russa estava impossibilitada de romper com a lógica do capital; posteriormente, ao ampliar-se (sem revolução) para o Leste europeu e deste em direção à periferia do capitalismo, acentuava a tendência anterior. A efetivação de uma transição isolada ou subalterna para o socialismo era uma impossibilidade objetiva. Subjetivamente, sob o terror da era Stalin, o mito do "socialismo num só país" converteu-se em tese taticista com estatuto de cientificidade e de classicidade.

O resultado final disto está estampado em 1989: a derrocada e o desmoronamento final da URSS e dos países que compunham o falsamento denominado "bloco socialista", e que não conseguiram romper com a
lógica, o domínio do capital. Seus traços internos anticapitalistas (de que foram exemplos a eliminação da propriedade privada, do lucro e da mais-valia acumulada privadamente), foram incapazes de romper com o sistema de comando do capital, que se manteve através dos imperativos materiais; da divisão social do trabalho herdada anteriormente e só parcialmente modificada; da estrutura objetiva atrasada em seu início e obsoleta em seu desenvolvimento posterior; e da conseqüente generalização do reino da escassez. Seus vínculos com o sistema mundial produtor de mercadorias impediram que sua conformação interna com traços anticapitalistas se tornassem determinantes. Ao contrário, esses países curvaram-se à lógica da produção e do mercado sob o comando do capital. Na síntese de Mészáros, a União Soviética não era capitalista, nem mesmo capitalismo de Estado. Mas o sistema soviético estava totalmente dominado pelo poder do capital: a divisão do trabalho permanecia intacta, a estrutura de comando do capital (e não do capitalismo, na distinção decisiva presente em Marx e reafirmada por Mészáros) também permanecia. O Capital é um sistema de comando cujo o funcionamento é orientado para a acumulação, sendo que essa acumulação pode ser garantida por diferentes caminhos. Com um diagnóstico que contempla algumas similaridades, Mandel afirma que "a persistência da produção de mercadorias na URSS e em outras formações sociais similares é uma evidência decisiva de que... não há uma economia socialista nem uma sociedade onde os meios de produção estejam plenamente socializados ou mesmo em processo de socialização".

Outro autor
[Robert Kurz], em recente e polêmico ensaio, desenvolveu a tese de que o sistema soviético estava na sua interioridade impossibilitado de romper com a lógica do sistema global produtor de mercadorias e do trabalho abstrato. Depois de demonstrar que o "sistema de mercado planejado", seguindo sua própria lógica imanente, levou ao extremo todas as irracionalidades do sistema produtor de mercadoria, ao invés de começar a eliminá-las, acrescentou: a produção de mercadorias "do 'socialismo real', ao chegar no mercado mundial, [teve] que sujeitar-se às leis deste, independente de suas leis próprias... O mercado mundial, em primeiro lugar uma metaesfera da produção de mercadorias das economias nacionais, impõe progressivamente um contexto global à lei da produtividade, descrita por Marx".

Esses países, tendo a URSS à frente, com insuficiente nível de desenvolvimento das forças produtivas, apesar de configurarem-se como sociedades pós-capitalisas, foram gradativamente e crescentemente sufocados pela lógica histórico-mundial do capital; a
tentativa de transição socialista intentada neste século XX não foi capaz de quebrar o centro hegemônico do capitalismo e a partir daí iniciar efetivamente a desmontagem da lógica do capital. Em vez da associação livre dos trabalhadores, da omnilateralidade e da emancipação humanas, de que tanto falou Marx, vivenciou-se a crescente subordinação destes países aos regramentos próprios do capital e do sistema produtor de mercadorias.
Na verdade estas sociedades pós-revolucionárias constituíram sociedades híbridas, nem capitalistas nem socialistas, cuja transitoriedade embora tivesse um télos voltado abstratamente para o socialismo, foi objetiva (e subjetivamente) regredindo e acomodando-se ao sistema produtor de mercadorias em escala internacional. Penso que há uma certa similaridade, para fazermos um paralelo histórico, com as formações sociais que, à época da transição do feudalismo para o capitalismo, assumiram também uma conformação híbrida, que gerou inclusive um expressivo e controvertido debate no interior do marxismo. A diferença mais evidente é que naquele trânsito o capitalismo tornou-se, ao final do processo, vitorioso, diferentemente da transição intentada no século XX, que não levou à superação do modo de produção capitalista. O caso chinês parece exemplar: subsiste através de uma falaciosa "economia socialista de mercado", cada vez mais atada (e sintonizada) com o sistema mundial produtor de mercadorias e sustentada até não se sabe quando por uma autocracia partidária.

Quero concluir com três sintéticas indicações:

Primeiro: Os eventos de 1989 sinalizam uma nova era de crise aguda do capital bem como a possibilidade real de revivescimento de uma esquerda renovada e radical, de inspiração marxiana, que não poderá ser responsabilizado pela barbárie (neo)stalinista vigente naqueles países até pouco tempo. O movimento socialista também será beneficiado pela intensificação das contradições sociais nas formas societárias que estão se configurando na ex-URSS e demais países do Leste Europeu.

Segundo: a análise das experiências revolucionárias do século XX nos permite concluir que "a revolução social vitoriosa não poderá ser local ou nacional; somente a revolução política poderá confinar-se dentro de um quadro limitado, em conformidade com sua própria parcialidade - [a revolução social] deverá ser global/universal, o que implica a necessária superação do Estado em sua escala global". Do que se depreende que as ocorrências de revoluções políticas nacionais não levam à realização imediata e nacional do socialismo, uma vez que este supõe um processo ampliado e de dimensão universalizante.

Terceiro: as possibilidades reais de superação do capital ainda encontram como subjetividade coletiva capaz de efetivá-las a classe-que-vive-do-trabalho. Mais heterogênea, mais complexificada e mais fragmentada é, entretando, pela análise da sociabilidade do capital, o ser social ontologicamente ainda capaz de virar uma nova página na história.

ANTUNES, Ricardo. A prevalência da lógica do capital.
Para a revista Crítica Marxista, 1994.

Antes Quixote!

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008






Alonso Quijano, o Dom Quijote. Dom Quixote na tradução para o português. Protagonista do livro de Cervantes, eleito pela crítica, em 2002, como a maior obra de ficção da literatura mundial de todos os tempos. Um personagem cativante, sem dúvidas. Mas não é curioso o fato de ter sido escolhido o maior de todos os tempos em uma época que se localiza muito depois de seu próprio tempo?

Dom Quixote é um fidalgo que, após certa idade, preenche seu tempo com a leitura de contos de cavalaria muito em voga à sua época. Como resultado perdeu sua razão, passando a acreditar na veracidade histórica das peripécias de seus heróis literários. E, como que para manter a coerência, resolveu fazer de sua própria história um conto épico, para que merecessem ser contadas pelos quatro cantos suas façanhas e seus infortúnios heróicos.

O resultado é uma série de sandices e desventuras que transforma moinhos em gigantes, pangarés em majestosos cavalos de batalha, bacias de barbeiros em elmos abençoados. E, para completar, um camponês embrutecido e ambicioso em fiel escudeiro, e uma camponesa incauta em donzela de incontestável beleza, valor e fortuna.

Ou, pelo menos, é isso que aparenta à maior parte dos que cruzam o caminho do fidalgo durante suas incursões. Descrever-lhe-iam como um verdadeiro lunático, possuidor de idéias e valores anacrônicos, em declarada contradição com a realidade. Dono de um ideal que jamais se tornará concretude. O livro de Cervantes representou, por isso mesmo, uma cruel reviravolta quando publicado. Considerando os contos de cavalaria algo de extremo mau gosto, sua novela, com traços satíricos e realistas, representou o início de uma nova perspectiva na literatura mundial.

Talvez por isso mesmo tenha a obra galgado o título oferecido pela crítica. Mas até a poderosa crítica é refém de seu tempo. E este é um tempo de difícil compreensão. Sem grandes pretensões, poderia ser descrito como um momento histórico de crucial desenvolvimento de contradições. Ao mesmo tempo, há um aumento fantástico da complexidade e da articulação às quais todos os seres humanos estão submetidos. A malha social criada por essas contradições e complexidades aparece, aos indivíduos, como um algo imutável, uma realidade cruel, dura e impiedosa. A verdade é que o mundo humando aparece aos próprios homens como uma "segunda natureza", algo fora de seu controle, como se eles não pudessem pôr rédeas nesta malha cruel, dura e impiedosa, como se eles não tivessem qualquer relação com a forma como ela se comporta.

Como, enfim, se não pudessem transformar em realidade seus ideais. Melhor então adequar-se, adaptar-se, acomodar-se. Dom Quixote, no tom satírico em que é apresentado, representa justamente aquilo que não se deve ser. Uma pessoa que perdeu o contato com o real, e intenta construir o que ninguém poderia acreditar ser possível. Aquilo que, pelo incontrolável andar da história, foi atropelado, destruído e enterrado. Que ficou comprovado como um insucesso, um anacronismo, uma utopia. Melhor mesmo ver o que dá para ser feito por agora. Nada de pensar grande. Nenhum assalto aos céus. Quem sabe um remendo aqui e outro acolá, e uma confortável vida conquistada graças ao mérito próprio, individual e, por que não, egoísta.

Melhor que ser Quixote, talvez fosse ser Luciano Chardon (Ilusões Perdidas, Balzac) ou Rodion Raskólnikov (Crime e Castigo, Dostoievski). Há algo que estes três personagens possuem em comum. Todos, no início de suas trajetórias, possuem um forte apego a um ideal de grande significado. No entanto, também existe aquilo de que apenas Chardon e Raskólnikov podem se gabar: ambos são tão reféns de seu tempo quanto a crítica apaixonada por Quixote.

Luciano Chardon é um jovem, nascido em uma provícia francesa, com incomparável talento literário e beleza física. Faz parte da prole de uma família pequeno-burguesa, de pai farmacêutico e mãe oriunda de estirpe nobre. Com seu querido amigo, David Séchard, Luciano divide a paixão pela poesia e confissões sobre suas pretensões literárias. Almeja tornar-se um reconhecido poeta e acredita piamente em sua capacidade para tal. Seu amigo, por outro lado, intenta seguir o caminho dos inventores, buscando inovações na forma de como se produzir papel.

A história se passa no período da Restauração, na França. Um momento que, advindo da ressaca da Revolução de 1789, restituiu antigos títulos da nobreza e parte de seu status. A província habitada por Luciano divide-se em áreas reservadas à população nobre, outras aos burgueses, e demais às classes subalternas. Acontece que o poeta enamora-se da mais proeminente dama da corte local.

Este romance rende ao jovem seu deslocamento para Paris, o centro da cultura francesa, único local onde poderia tornar concretas suas pretensões de aumentar o patrimônio cultural de seu tempo como grande literato. A cidade, no entanto, demonstra sua impiedade logo de início. O jogo da nobreza local faz com que o romance entre o pequeno-burguês pobre e a dama emergente soe como uma afronta, separando o casal em pouco tempo após sua chegada à capital.

A partir daí, Luciano passa a perceber que estará se debatendo contra uma realidade constritora da qual não pode escapar simplesmente. Percebe que seus mínimos passos precisam do mais frio cálculo. Balzac, durante toda a obra, expõe as consequências da transferência daquilo que, por conveniência, se poderia chamar de "moral maquiavélica" para a vida privada. Chardon, tendo de viver em grande penúria durante um bom tempo em Paris vê-se forçado a abandonar a poesia, o ciclo de artistas e intelectuais empobrecidos do qual fazia parte, e a abraçar o jornalismo e a política (melhor dizer politicismo), como formas de galgar reputação suficiente e, eventualmente, recuperar o sobrenome nobre da família de sua mãe: de Rubempré.

O jovem, porém, não se encontrava preparado para enfrentar toda esta mudança. Traído e atacado por diversos personagens da cena parisiense que se valem dos mesmos métodos que os seus, e que temem seu talento e sua beleza, acaba aprofundando a miséria de sua família que, à sua espera na província, não recebe notícias suas senão súplicas por mais crédito e dinheiro. Termina por quase suicidar-se, quando, à beira de uma estrada, é encontrado por um sacerdote espanhol afortunado que resolve tomá-lo como protegido, explicando ao jovem o que não pôde apreender sozinho. Deveria deixar de lado seus ideais e seus valores em prol daquilo que realmente contava como seu objetivo. O padre é, para Balzac, a personificação daquela "moral maquiavélica".

Quanto a Rodion Raskólnikov, jovem estudante, russo, que habita São Petersburgo, convive com uma miséria extrema que afeta desde sua família a seu ciclo social mais próximo. Em determinado ponto, sua pobreza o força a abandonar a Universidade e seus estudos.

Raskólnikov, no entanto, é dono de uma impressionante inteligência e erudição. E tem consciência disso. Divide os homens entre os "ordinários" e os "extraordinários", sabendo que há possibilidades reais de encontrar-se entre os do último conjunto. Com base nisso, cria a teoria do "crime permitido". Um crime consumado em nome de um bem maior. Algo que, em seus primeiros passos, um grande homem deve executar para que, a partir disto, possa alçar vôos maiores, elevando, junto a si própio, os patamares atuais da humanidade. Como exemplo, Rodion considera Napoleão um dos maiores criminosos da história humana.

Embebido nessas considerações, o estudante passa a planejar o crime que deve servir para tirar-lhe da miséria, modificar suas condições de vida e permitir que suba os degraus necessários para abrir caminho à sua glória e de sua época. Encontra em Aliena Ivanóvna, velha usurária a quem penhora seus bens na tentativa de sobrevivência econômica, sua vítima perfeita. Convicto, toma as atitudes decisivas para concretizar suas pretensões e assassina a velha agiota. Como um acidente de percurso, acaba, também, comentendo o homicídio da irmã da velha, por esta ter aparecido de repente no local do crime e encontrado o assassino e o corpo.

Raskólnikov emerge do crime como o possuidor de considerável fortuna conquistada com o roubo das jóias acumuladas pela vítima. No entanto, não é capaz de aproveitar os frutos de sua ação. Subsequente ao delito, acomete-se de uma insuportável culpa, que o força a livrar-se de seu produto. A expiação do personagem o coloca em cada vez mais profunda degradação. Rodion não é capaz de sustentar suas ações. Mecanicamente, passa a buscar a sua própria punição.

Dostoievski é mesmo famoso por, em certos aspectos, ter previsto conclusões da psicanálise freudiana. O sentimento de culpa do estudante russo faz com que ele passe a sentir o desejo de punição. As teorias criminológicas psico-dinâmicas, que encontram bases em Freud, diriam, inclusive, que o cometimento do crime é já uma forma de busca do castigo, como alívio para neuroses e instintos incontroláveis do indivíduo. Ou talvez, o autor de Crime e Castigo quisesse apenas demonstrar, acompanhando boa parte do pensamento existencialista, que o sofrimento é mesmo uma forma de elevação do ser.

O importante é que, com base nisto, por diversas vezes o protagonista acaba por ver-se subitamente frente à polícia, com incontrolável desejo de entregar-se por seu crime. E, mesmo após o desfecho da investigação policial ter levado uma outra pessoa à prisão, o jovem entrega-se, confessando seus atos. Assim, é condenado a uma pena reduzida, graças a seus bons antecedentes, a ser cumprida na Sibéria.

Luciano e Rodion possuem, realmente, algo em comum com Quixote. Um impulso ético inicial que os encoraja a dar passos decisivos na busca por uma elevação não apenas individual, mas genérica, a ser apreendida por todos os seres humanos. Seja através da elevação da humanidade por via da arte, seja pelos feitos de um homem "extraordinário", ou pelas magníficas façanhas de um corajoso herói montado em seu cavalo de batalha. No entanto, Luciano e Rodion não conseguem levar a frente suas pretensões como Quixote.

Há que se fazer jus ao nosso herói. Poucos são aqueles que ousariam negar, ou mesmo reduzir, a força de vontade e incomparável dedicação com as quais Dom Quixote dota as suas convicções. E mesmo depois de indizíveis derrotas, ou mesmo vitórias fictícias, o cavaleiro mantém sua cabeça erguida. Não que isto torne seus feitos maiores. Mas, com certeza, o torna mais forte, mais cativante.

Luciano e Rodion estiveram, visivelmente, atentos ao real alcance de seus atos durante todo o seu percurso. Calcularam seus caminhos e amargaram, quando necessário, suas derrotas. O francês seria, indubitavelmente, ovacionado em seu tempo, tendo chegado ao fim da linha, praticamente ressucitando ao encontrar um protetor afortunado que o levaria a escaladas mais pretensiosas. Quanto ao russo, se não pudesse ser congratulado, seria, ao menos, perdoado. Cumprida sua pena voltaria ao convívio dos seus como alguém que cometeu um erro preenchido de boas intenções.

O que ambos não tinham é o que sobra em nosso cavaleiro: uma força de espírito quixotesca! O entusiasmo em valores e idéias que, em sua melhor forma, conserva-se inabalável. É certo que, no caso do fidalgo, convicção e sanidade não andavam de mãos dadas. Mas se se encontrava refém de uma realidade que, factivelmente, não poderia transformar, talvez isto deva ser reclamado ao próprio Cervantes, que optou por construir uma obra em que as idéias e os atos teriam menos concretude que o seu contexto.

Quanto a nós, vivemos um tempo que parece, cada vez mais, imutável, decidido, fixo. O fim da história, o fim das ideologias, o fim das utopias, o fim das classes sociais. O fim da picada. Uma realidade cruel, dura e impiedosa, que aparentemente escapou ao nosso controle. Melhor adequar-se, adaptar-se, acomodar-se. Afinal, só uma percepção quixotesca deste mundo poderia dignar-se a enfrentá-lo por seus flancos, e não por sua lógica. Mais respeitável vencer como Chardon ou fracassar como Raskólnikov, do que penar como um Quixote lutando por algo em que poucos acreditariam. Mas a verdade é que as coisas precisam mudar, ou pode não haver mais o que ser mudado futuramente. Então melhor ser confundido com um Dom Quixote em declarada contradição com a realidade, com dureza e com ternura, como se diz, do que com um Chardon ou um Raskólnikov, dóceis e submissos ao cotidiano. Por isso, antes Quixote! Antes Quixote que Chardon! Antes Quixote que Raskólnikov!