Os impactos da transposição nas comunidades Semi-árido

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Entrevista com membro da Comissão Pastoral da Terra, sobre os impactos da transposição do rio São Francisco, concedida ao Brasil de Fato.

Os impactos da transposição nas comunidades Semi-árido

por Admin última modificação 07/04/2010 14:40

Em entrevista ao Brasil de Fato Roberto Malvezzi, o Gogó, da CPT, avalia os impactos das obras que seguem de forma acelerada pelo sertão nordestino


07/04/2010


Patrícia Benvenuti

de Juazeiro (BA)


Impactos ambientais e sociais, uma revitalização que mal saiu do papel e traz muita incerteza. Esse tem sido o saldo das obras da transposição do rio São Francisco que, quase três anos depois do seu início, segue acumulando danos para as populações da região.

Apresentada como uma dos principais projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, a transposição deve ter parte de suas obras concluídas até o final deste ano, prometendo levar água para 12 milhões de pessoas na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte.

Antes mesmo do começo das obras, porém, organizações populares já alertavam que o intuito da transposição é disponibilizar água para projetos de irrigação e produção de crustáceos em larga escala, favorecendo o agronegócio e o mercado internacional.

Se a resistência popular teve seu momento mais forte com o jejum do bispo de Barra (BA), Dom Luiz Cappio, no final de 2007, o endurecimento das comunidades contra a transposição deve crescer à medida em que os impactos ficarem mais evidentes e as promessas de melhorias não forem cumpridas.

A avaliação é do integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) Roberto Malvezzi, o Gogó. Em entrevista concedida ao Brasil de Fato durante o VII Encontro Nacional da Articulação no Semiarido Brasileiro (EnconASA) em Juazeiro (BA), no final de março, Gogó falou sobre o andamento das obras da transposição e as consequencias do empreendimento para a região.

Qual a situação atual das obras de transposição do rio São Francisco?

A transposição tem sua obra em andamento. O governo acelerou o processo de construção dos dois canais e fala que vai concluir um [deles] até o final desse ano, o chamado [canal] “eixo leste”, que põe água diretamente na Paraíba, e que o outro seria concluído em 2012. Olhando assim, objetivamente, eu acho que o governo está fazendo um bom marketing. Penso que as obras estão muito mais atrasadas e que, mesmo que avancem, eles [governo] ainda vão demorar bastante tempo para fazer o “eixo leste”.

Até esse momento, que impactos são sentidos na região em decorrência dessas obras?

Os canais têm um impacto ambiental direto, que você vê logo, na destruição da caatinga, porque eles são largos e longos, e a remoção das comunidades no entorno. Algumas [comunidades] são realocadas, outras têm muitas dificuldades, como é o caso dos índios Pipipã, já que um dos canais, o “eixo leste”, atravessa o seu território e também a chamada Reserva Biológica da Serra Negra, em Pernambuco, que é uma das reservas biológicas mais antigas que nós temos no Brasil, criada na década de 50. Também está havendo muito problema, agora, na região da Paraíba e em outros estados devido à má indenização daquelas pessoas que estão sendo arrancadas de suas áreas para ceder espaço aos projetos.

Há uma estimativa de quantas pessoas já foram removidas?

Nós não temos essa totalização porque o governo fala em 700 famílias, mas nós achamos que é muito mais. Como o espaço é muito amplo, e a gente não tem uma articulação total por onde passam os canais, não se consegue fazer uma estimativa real das populações impactadas. Mas só os Pipipãs, da Reserva Serra Negra, são mais de cinco mil pessoas. Então a gente sabe que, direta ou indiretamente, o impacto é muito maior do que aquele que o governo alega que vai ter.

Qual o atual estágio de revitalização do rio, que havia sido prometida?

A revitalização é como a gente sempre achou. Ela sempre foi, na visão do governo, uma espécie de moeda de troca, uma espécie de “cala-boca” para a população que resistia à transposição no sentido de dizer “nós vamos fazer a revitalização”. Mas a gente sabe que ela nunca teria o mesmo vulto de investimentos que está tendo a própria obra da transposição. Hoje até a grande mídia já percebe que os investimentos destoam muito do que se investe na revitalização e do que se investe na transposição. Eu acho que se eles fizerem a transposição, nesse momento a revitalização vai ser abandonada, porque só estão fazendo alguma coisa no sentido de compensar politicamente, e nem tanto do ponto de vista ambiental, o ônus que é fazer a obra da transposição.

Está sendo feita uma espécie de saneamento aqui no Vale do São Francisco e em outros municípios, e isso é muito importante. Mas como não está concluído, não se tem noção ainda da qualidade desse saneamento. A gente não sabe se vai ser feito o tratamento do esgoto coletado nas cidades antes de ser jogado no rio, a gente não tem certeza disso. Esse é o único aspecto, digamos assim, visível e relevante, que se tem da revitalização do São Francisco. Todas as demais reivindicações, como cessar a implementação de obras grandiosas e rever toda a questão do agronegócio no oeste baiano, a remarcação dos territórios indígenas e quilombolas no Vale do rio São Francisco e água para as populações de toda a região Nordeste, isso tudo é muito frágil no processo de revitalização.

Tu já te referiste ao Nordeste como um laboratório para a mercantilização da água no Brasil. Como seria o papel da transposição dentro dessa experimentação?

Na verdade, a transposição é a criação de um poderoso mercado de água. O mecanismo de funcionamento da transposição vai ser assim: uma espécie de empresa vai vender água do São Francisco e, quando a água cair nos outros estados receptores, outras empresas vão comprar essa água. Depois essas empresas vão vender [a água] para os chamados usuários, que ainda são outras empresas, para depois chegar no consumidor final. Todo mundo vai ganhar dinheiro, vai vender água e vai comprar água. Então o processo final e o custo final dessa água vão ser caríssimos.

Pessoalmente eu acho que o mais grave é que eles [empresas] vão comprar água do São Francisco mas vão se apropriar gratuitamente da água de chuva estocada nos grandes açudes. Então eles vão vender não só a água do São Francisco, mas vão vender também a água de chuva das grandes barragens. Vai ser um grande negócio, você vai comprar água ou receber água gratuitamente e revender para as populações. Nesse sentido, segue aquilo que o Banco Mundial sempre quis, que é criar os mercados de água no Brasil. Isso é proibido por lei mas, na prática, a transposição do São Francisco cria esse mercado. É a filosofia internacional da mercantilização da água.

E esse sistema de gerenciamento de recursos hídricos que está sendo implantado no Brasil veio da França, mas se você for para outros países da América Latina ou outros lugares, você vai ver que é o mesmo sistema. É o sistema que esses organismos multilaterais quiseram implantar em todos os lugares do mundo porque você disciplina o uso da água através de mecanismos onde as empresas ou compram os mananciais ou recebem outorgas, licenças do Estado para poder explorar aquele manancial. No Brasil a água não pode ser privatizada, mas o Estado pode conceder o uso da água para uso privado, e é o que vai acontecer no Vale do São Francisco. Empresas vão comprar essa água e poder explorar comercialmente.

E como está a mobilização da população do semi-árido em relação à transposição?

A resistência maior hoje em dia está na Paraíba e no Ceará. É significativo o fato de prefeitos da Paraíba terem saído da luta pró-transposição porque perceberam que a transposição leva água para a Paraíba mas não distribui água. No Ceará, existem resistências das populações que estão sendo realocadas e deslocadas pelas obras da transposição. Sobretudo, acho que essa resistência vai crescer na medida em que as grandes promessas do governo não forem cumpridas. O governo promete água para 12 milhões na Paraíba, no Ceará e no Rio Grande do Norte. Só que essas pessoas criaram uma expectativa de que elas vão ter água e, quando a água da transposição chegar, vão ver que não vai para as populações. Então, o governo vai enfrentar um outro nível de conflito, que é realmente a finalidade principal dessa água. Ela tem uma finalidade econômica, mas a população foi instrumentalizada. Eu sei com segurança, por conversas que, dentro do governo, tem muita gente preocupada com essa possibilidade concreta. Inclusive falam que estão angustiados porque a obra da transposição não distribui água, ela apenas transfere água das bacias do São Francisco para as bacias do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte que já têm água.


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quarta-feira, 7 de abril de 2010

O Brasil de Fato tem sido a maior alternativa de imprensa popular no Brasil. Uma demonstração de jornalismo democrático, com ampla margem de debate e carga ética indiscutível. Vale a pena conferir o anúncio que segue a baixo, o site e o próprio jornal.





"Movimentos sociais são arquitetos de uma nova ordem jurídica"

terça-feira, 6 de abril de 2010

Reportagem da Carta Capital, publicada no site do MST.

"Movimentos sociais são arquitetos de uma nova ordem jurídica"

5 de abril de 2010

Da Carta Capital

Professor da American University (EUA), Miguel Carter pesquisa há quase duas décadas os conflitos fundiários e a luta pela terra no Brasil. Nascido no México e criado no Paraguai, o cientista político percorreu mais de 160 mil quilômetros a bordo de um fusca preto pelos rincões do Brasil desde 1987, quando, ainda estudante, decidiu desbravar o interior com um mochilão nas costas. No início dos anos 90, já com uma bolsa de estudos da Columbia University, voltaria à rotina de viagens pelo País, desta vez com uma proposta de pesquisa mais elaborada, dedicada a lançar luzes sobre a questão fundiária brasileira.

O pesquisador acaba de lançar um livro sobre o tema, Combatendo a Desigualdade Social – O MST e a reforma agrária no Brasil (Editora Unesp, 564 págs., R$ 65). Trata-se de uma coletânea de artigos escritos por renomados pesquisadores de universidades brasileiras, europeias e dos Estados Unidos, um trabalho que tem sido coordenado e organizado por Carter desde 2003.

Na obra, Carter destaca a importância da reforma agrária para reduzir as desigualdades sociais e defende a necessidade- de o Estado investir em políticas de redistribuição de renda. “Os estudos compravam que, quando temos uma situação de extrema desigualdade, isso atrapalha o desenvolvimento econômico.”

CartaCapital: No Brasil, há quem defenda que o País precisa crescer antes de repartir suas riquezas. O senhor defende o inverso. Por quê?

Miguel Carter: O Banco Mundial e o Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID) têm feito estudos importantes, inclusive com avaliações econométricas, comprovando que, quando temos uma situação de extrema desigualdade, isso atrapalha o desenvolvimento econômico. Quem não tem acesso ao crédito, à terra e à educação não tem condições de produzir nem consumir, e isso impede o PIB de crescer. Nancy Birdsall, do Center for Global Development, comparou o desempenho da economia brasileira com o da Coreia do Sul, país que, após a Segunda Guerra Mundial, promoveu uma reforma agrária radical. E, ao fazer uma simulação, constatou que a economia brasileira teria crescido 17,2% mais entre 1960 e 1985 se tivesse os níveis sul-coreanos de igualdade social. A disparidade de renda custou ao Brasil ao menos 0,66% do PIB todos os anos.

CC: O que há de errado com o modelo de desenvolvimento?

MC: A questão central é o tipo de crescimento que estamos promovendo. De acordo com um relatório do Banco Mundial, o Brasil poderia reduzir a pobreza pela metade em dez anos com um crescimento de 3% e uma melhora do coeficiente Gini (indicador de desigualdade) de 5%. No entanto, o País levaria 30 anos para cumprir esse objetivo com os mesmos 3% de crescimento e nenhuma melhora na distribuição de renda.

CC: A reforma agrária é, de fato, capaz de reduzir as disparidades sociais?

MC: Ela é fundamental. Não é o único instrumento. Tem vários outros, como política salarial, de previdência, educação... É o conjunto dessas políticas que pode mudar o quadro de extrema desigualdade. O Brasil melhorou a distribuição de renda, mas ainda é o décimo país mais desigual do mundo. A reforma agrária pode contribuir para a redistribuição das riquezas, além de evitar o êxodo rural e estimular o desenvolvimento local. O Brasil poderia seguir o exemplo de diversos países asiáticos, que há décadas fixaram limites para o tamanho da propriedade rural. Na Coreia do Sul, é de 3 hectares. No Japão, varia de 1 a 10 hectares, conforme o acesso à irrigação.

CC: A que se deve o atraso brasileiro em promover uma ampla reforma agrária?

MC: O principal fator é o poder que tem a elite agrária no Brasil. Desde o tempo de Colônia, é um setor muito forte. Joaquim Nabuco e outros liberais já falavam em reforma agrária na época do Império, mas essa discussão sempre foi barrada. Getúlio Vargas, na década de 30, deu direitos aos trabalhadores urbanos, mas nem sequer permitiu a legalização dos sindicatos rurais. A classe camponesa foi a mais marginalizada e a que sofreu as piores repressões, nos diversos momentos autoritários.

CC: De que forma o governo favoreceu a elite agrária?

MC: No regime militar, o governo decidiu investir no fortalecimento e na modernização da agricultura, com uma grande carga de subsídios. Até hoje o volume de gastos estatais com o chamado agronegócio é muito superior ao pago à agricultura familiar. Estima-se a existência de 22 mil grandes proprietários que receberam, entre 1995 e 2005, algo em torno de 58,2 bilhões de dólares do governo federal. Ao passo que mais de 6,1 milhões de camponeses receberam apenas 10,2 bilhões no mesmo período. Essa política de forte estímulo à agricultura empresarial, em detrimento dos pequenos produtores, é fruto da ditadura.

CC: O que explica o surgimento de um movimento como o MST nesse cenário desfavorável?

MC: Após a redemocratização do País, criou-se um espaço para reivindicações, com maior liberdade de associação. É nesse contexto que surgem os movimentos sociais. No campo, o MST é o maior deles, o mais reconhecido. Mas a reforma agrária promovida nos últimos anos foi conservadora. Houve alguma redistribuição de terra, mas sempre após longos processos burocráticos e de forma residual. Não se redistribui terra pensando em mudar a estrutura agrária. E quase sempre isso ocorre em locais que não são de interesse da elite. Em áreas afastadas, na Amazônia, ou em pastagens não muito valorizadas.

CC: O que garantiu o êxito do MST?

MC: O MST decidiu bem cedo criar um movimento nacional, com dinâmica de mobilização de massas. E conseguiu isso com um êxito sem precedentes na história do Brasil. Juntar 12 mil pessoas, em 17 dias, para uma marcha pelo País em 2005, é uma coisa inédita não apenas na história brasileira como do mundo inteiro. Além disso, o MST criou importantes estratégias. Articulou-se em rede, criou uma estrutura descentralizada, baseada em processos decisórios coletivos. Não existe reforma agrária sem o Estado, assim como é muito difícil o governo promovê-la sem que haja reivindicação, uma demanda organizada. E o MST surge para organizar essa demanda. O movimento contribui para a democratização do País.

CC: Por quê?

MC: O MST vai aonde está a população mais pobre do Brasil e a convida para participar do movimento. O pessoal envolve-se nos acampamentos, aprende sobre os seus direitos, conhece a política do Brasil. Criam-se assim verdadeiras escolas de cidadania. As pessoas de fora entendem essa dinâmica melhor que vários intelectuais do Brasil, que veem uma ocupação de terra como um grande desrespeito ao Estado de Direito. Eles não entendem que a luta pela democratização implica choques desse tipo. Ás vezes é preciso violar certas leis em razão de um princípio maior. Os movimentos sociais não são inimigos, são arquitetos de uma nova ordem jurídica. O movimento operário, por exemplo, foi fundamental para a criação das atuais leis trabalhistas.

CC: E como o Judiciário se porta diante dessas demandas?

MC: O Judiciário, de modo geral, é um grande obstáculo. Não porque as leis são as piores. A lei permite a reforma agrária. O problema é a interpretação. Em boa parte, isso tem relação com a origem de classe dos juízes. Muitos são filhos de grandes fazendeiros, frequentam os mesmos clubes. Também há a questão da formação, que enfatiza certos aspectos da lei, e não outros.

CC: A partir do governo FHC, há uma maior distribuição de terras no Brasil, ainda que sob a perspectiva de uma reforma agrária conservadora, como o senhor define. Há alguma diferença entre a política de FHC e a do governo Lula?

MC: Comparados com os demais presidentes, eles distribuíram mais terra. Fernando Henrique, até pela conjuntura, o massacre de Eldorado dos Carajás, uma mobilização intensa, investiu nisso. Lula, de modo geral, mais ou menos manteve o que FHC fez. Eu tenho uma visão de reforma agrária mais restrita que a do Incra. Eu, por exemplo, excluo dos números da reforma agrária aquilo que é relacionado à regularização fundiária. Também não considero as áreas de reserva extrativista na Amazônia. Sou a favor, mas isso é um outro tipo de política. Excluindo esses dados, o número de assentamentos dos dois é muito semelhante.

CC: Não há nenhuma diferença?

MC: Houve, no governo Lula, a criação de uma série de programas de apoio à reforma agrária, como acesso ao microcrédito, incremento do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, aumento da eletrificação rural. Aumentaram os recursos para a agricultura familiar. Nesse sentido, Lula foi menos conservador do que FHC. Por outro lado, Lula assentou muito mais gente na Amazônia e no Norte do Brasil, repetindo um padrão de colonização da época da ditadura.

CC: O Brasil foi capaz de estancar a concentração de terras?

MC: Essa reforma conservadora apenas reduziu o ritmo da concentração de terras, mas não foi capaz de desconcentrar nada. Para isso, seria necessária uma reforma progressista. Mas isso não está em pauta no governo. Está na pauta do MST e de alguns partidos de esquerda. No momento, infelizmente, a disputa é pela sobrevivência dessa reforma conservadora. Ou isso ou nada.


Fonte: http://www.mst.org.br/node/9415

Avatar: um grito contra o capitalismo, pero no mucho

domingo, 4 de abril de 2010

Avatar: um grito contra o capitalismo, pero no mucho.


Avatar, o mais falado blockbuster dos últimos tempos é um filme que incitou mais discussões do que eu esperava. Após ver a verdadeira epifania de críticas por um filme tão plástico é difícil não se perguntar se ele não teria algo a dizer de fato. As críticas ao Avatar, no entanto, raras vezes conseguem chegar à discussão profunda acerca do filme, de suas perspectivas e do contexto no qual se insere esta obra de James Cameron.


A película se tornou tão famosa que uma descrição pormenorizada de seu enredo é dispensável. Um simples resumo é suficiente para dar bases a esta discussão. Em Avatar, uma empresa de mineração descobre um novo planeta, com propriedades naturais favoráveis à exploração mercadológica. O público é envolvido, desde o início, em um futuro, talvez não tão distante, de uma sociabilidade capitalista com tecnologia altamente avançada. Dentre os feitos deste avanço, está a possibilidade da geração de corpos geneticamente construídos para a sobrevivência em planetas sem condições ecológicas para a vida humana, mas com seres inteligentes.


É o caso do filme. O planeta descoberto, batizado de Pandora, possui alta reserva de um valioso minério, o qual a referida empresa poderia explorar com direitos de exclusividade. Para tanto, contudo, seria necessária uma verdadeira estratégia militar para que as forças ambientais do planeta em questão, bastante além das capacidades naturais de sobrevivência humana, fossem domadas a fim de possibilitar sua exploração econômica. Isto não é uma obstáculo para a corporação mineradora. Ela se utiliza de seu poder para a montagem de um verdadeiro exército privado com o objetivo de colonização de toda a área. Concomitantemente, põe sob suas rédeas um grupo de renomados cientistas com o intuito de produção de conhecimento acerca das propriedades naturais do local de mineração.


Estes cientistas são os responsáveis pela criação dos avatares. Réplicas perfeitas de corpos dos Na'vi, o povo nativo de Pandora. Sua estrutura genética é consideravelmente diferente da humana, o que se explicaria pelos caminhos diversos de sua evolução biológica no ecossistema de seu planeta natal. Contudo, com a ajuda da alta ciência os humanos conseguem desenvolver a técnica de transferir sua consciência para os corpos por eles produzidos, o que os permite interagir de maneiras muito mais complexas com o planeta hostil. Em seus avatares, os colonizadores são capazes de respirar, andar sem equipamentos etc., pelo ambiente em questão.


Assim, surgem três questões importantes a serem discutidas: a capacidade inovadora do filme; a relação de seu enredo com a realidade (o que levará à terceira questão); a sua perspectiva artística.


É indispensável pontuar: Avatar é um filme com uma fotografia espetacular. Aqui, a palavra espetacular não é apenas um elogio. Ela está ligada umbilicalmente com sua real origem, o espetáculo. O filme é extremamente plástico. A sensação do espectador é de que as imagens foram realmente gravadas em um outro planeta, onde vive um outro povo com uma cultura “estranha” à sua. Sem dúvidas, há uma demonstração impressionante de onde a técnica cinematográfica pode chegar e de quais as consequências que ela pode atingir em suas apresentações de perspectivas. Elogiar simplesmente a técnica, contudo, é fazer uma análise altamente formalista do filme.


Se a técnica cinematográfica é avançada, o enredo de Avatar impressiona em como é limitado. Em suma, tudo o que o espectador espera que vai acontecer durante o filme realmente acontece. Uma cadeia quase interminável de clichês que já foram apresentados em inúmeras peças de cinema que vieram antes. Apenas para citar o maior e principal de todos: o ex-fuzileiro naval que renega sua posição em sua cultura de origem para aliar-se à luta que considera justa de um povo “atrasado” em relação ao seu e, graças à sua “superioridade cultural” intrínseca, torna-se o líder “nato” do povo do qual vira protetor.


Em conversa com dois camaradas após assistirmos ao filme, percebemos que é exatamente a mesma história, por exemplo, de Tom Cruise em O Último Samurai (para citar um só exemplo). A única diferença está dos Na'vi para os japoneses. Só. Os norte-americanos renegados voltam-se contra sua cultura para, a partir dela, domar toda uma outra cultura complexa e milenar tornando-se não qualquer coisa, mas o maior expoente, líder e referência da resistência desta cultura contra seu inimigo externo de onde é originado. No caso d'O Último Samurai, pelo menos, a perspectiva real não é aviltada como em Avatar e os rebeldes são derrotados pela lógica da força militar de uma cultura mais voltada para o belicismo.


A questão central é a seguinte: Avatar não apresenta nada de novo esteticamente falando, fora a mais avançada tecnologia de produção cinematográfica. E, como é comum em filmes como os que apresentam esta perspectiva, a discussão de fundo até tem contornos críticos, mas não radicais.


Isto se demonstra na relação do enredo do filme com os nexos do real. A discussão que está por traz da história contada em Avatar (e, nas devidas proporções, em O Último Samurai também) possui um cunho weberiano da crítica à razão Iluminista. Esta luta entre razão e mundo é apontada há séculos, mas é n'A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer que ela ganha um contorno sólido.


Acompanhando Max Weber, os autores percebem que o sonho emancipatório dos Iluministas dos séculos XVI a XIX, de levar a humanidade à liberdade através do conhecimento científico resultou em um avanço única e exclusivamente voltado para a dominação capitalista. A ciência é posta sob a batuta da economia. O desenvolvimento do conhecimento é reduzido à evolução da técnica de produção. A sociedade se molda ao cálculo racional, que permite a previsibilidade dos lucros e das perdas econômicas. A ciência, longe de livrar os seres humanos das sombras dos mitos medievais, por exemplo, leva-os à gaiola de aço do capitalismo, do qual não conseguem mais escapar. A razão é, assim, a verdadeira inimiga da emancipação.


Vejamos se não é esta a perspectiva apresentada em Avatar. Pouco esforço é necessário para demonstrar como, no filme, a ciência e a técnica estão completamente dominadas pela lógica racional da economia. A filiação (espontânea?) do enredo a esta questão se demonstra ainda mais facilmente na forma como os Na'vi se relacionam com seu planeta natal. Uma forma altamente mística, religiosa. A religião, a mitologia são, em suma, o contrário da razão. Seu antônimo natural. Religião e ciência são esferas antagônicas nesta perspectiva. Não bastasse, é exatamente a partir desta relação mítica com Pandora que os nativos conseguem vencer seus invasores.


A mensagem final para o público: uma apresentação negativa da racionalidade humana interligada a uma positividade extrema de sua capacidade de entendimento antropomorfizada da realidade em uma perspectiva falseadora do real. A razão é apresentada como a destruição da vida, e a sociedade capitalista é identificada à racionalidade. O misticismo e a relação romantizada com a natureza, sem a percepção de seus reais nexos são alavancados ao máximo, confundindo a real relação dos seres humanos com o mundo. Seu real intercâmbio, sua lógica verdadeira de funcionamento, reduzindo, por fim, todo o relação homem-natureza racional à destruição de ambos.


A perspectiva estética do filme, por fim, torna-se anticapitalista, sem dúvidas. Mas um anticapitalismo tímido, indefeso e romântico. No fim, um anticapitalismo inofensivo. Um desejo impulsivo do retorno à vida natural e abandono da complexidade das (hiper)modernas sociedades, com suas megalópoles conturbadas e relações mercantilizadas elevadas a um volume tão intenso que é capaz de deixar apenas a dúvida se ainda formam uma sociedade humana (aliás, note-se como o representante da empresa em Avatar é apresentado como altamente “desumano”, o que não é uma representação de todo mistificadora). Uma sociedade tão “desumana” que é capaz de, atualmente, pôr em risco a própria existência do planeta com a crise ambiental que ela produziu.


Mas qual alternativa esta perspectiva oferece? Visto que um retorno à vida primitiva da humanidade é impossível e, na maioria dos casos, até indesejável, a solução seria atacar aquilo que nos trouxe até aqui. Atacar a “racionalidade” altamente econômica do capitalismo. Reduzi-la, domá-la, dá-la uma cara mais humana. Em uma palavra: antropomorfizar o capital. Aqui as coisas se confundem. A capacidade humana de ver nas coisas características suas o que é, desde o início, um equívoco, é utilizada para justificar a possibilidade de continuar convivendo com o capitalismo, desde que ele reduza um pouco o seu lado “racional” para dar espaço à humanidade (não tão “racional”). Ou seja, uma perspectiva de reforma do capital, como se este pudesse ser controlado, como se sua lógica pudesse ser domada.


Não é a toa que o criador de Avatar, James Cameron tem como uma de suas maiores referências e amizades Al Gore, o ex-candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, conhecidamente um defensor do desenvolvimento sustentável do capitalismo. No Brasil, Marina Silva do Partido Verde, que tem alardeado sua candidatura à presidência este ano sob um programa que “une o melhor do PT e do PSDB” a uma “perspectiva sustentável”, ou seja, uma política econômica neoliberal pintada de verde, declarou-se grande fã do filme. Não há nada de surpreendente aqui. É a mesma velha cantilena do Capital tentando demonstrar que é possível a convivência da humanidade com ele. Ao mesmo tempo, contudo, a realidade demonstra o contrário e o fracasso de Copenhagen, de Kyoto e de várias outras tentativas de solucionar os problemas ambientais através do diálogo e desta convivência com o Capital apenas comprovam isto.


A identificação do capitalismo à racionalidade é o erro de fundo. Na verdade, a irracionalidade está justamente na maneira como o Capital se reproduz atualmente. Opor a esta irracionalidade uma outra, com uma máscara mais humana, não é o que pode oferecer solução para os problemas enfrentados. Avatar se filia a esta perspectiva limitada e por isto não pode oferecer mais do que uma vitória romântica do misticismo sobre a “racionalidade” capitalista. Uma crítica ao capitalismo, pero no mucho.


A certeza que tenho é de que o filme poderia oferecer muito mais se apresentasse o conflito entre esta sociabilidade capitalista “racional” e a sua superação histórica real. Uma superação fundada não sobre o romantismo, mas sobre uma reflexão do real intercâmbio entre homens e natureza. Uma formulação que parte da apreensão científico-filosófica material da vida e, por isto, é capaz de propôr uma superação verdadeira para a atual organização da produção humana. Superação que não se confunde com uma humanização do Capital, mas com a sua imperativa destruição. Que se resume, então, na construção da real emancipação humana: a sociabilidade comunista.