O Direito, o Positivismo e as devidas ressalvas.

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

No Movimento Estudantil de Direito (MED) e entre os juristas que se prestam a cultivarem um posicionamento progressista é conhecida a postura que busca uma reflexão crítica acerca do papel do direito na sociedade. Em larga medida, na verdade, procura-se mesmo a construção de um saber que se preste a desvendar a função cumprida pelo ordenamento jurídico no capitalismo. Esta necessidade de responder a este questionamento básico acaba por desdobrar-se em uma série de correntes, mais ou menos avançadas, sobre como devem os juristas progressistas relacionar-se com o direito.

Entre os conceitos criados a partir destas reflexões o de Direito Alternativo é o mais caro, e, talvez, o que mais precise ser dilapidado atualmente. Em linhas gerais, o Direito Alternativo encontrou, em seu desenvolvimento duas subdivisões: o Direito Alternativo, propriamente dito, e o Uso Alternativo do Direito.

Pude participar do I Encontro Nacional da Rede Popular de Estudantes de Direito (REPED) e ver o quanto esta oposição precisa ser melhor explorada pelo MED e por aqueles que buscam a construção de uma Ciência do Direito e de uma Educação Jurídica que avance no combate às contradições sociais. O debate do Direito Alternativo propriamente dito é, visivelmente, mais hegemônico entre os juristas de esquerda.

Tentando delinear de maneira geral este conceito, o Direito Alternativo propriamente dito busca conferir legitimidade ao que seriam manifestações jurídicas para além do Estado. Esta seria uma forma de combater o positivismo no direito, que reconhece enquanto legítimas apenas as normas postas pela entidade estatal, o que, em última instância seria uma maneira de dominação por parte da classe dominante, já que é a ela que serve o Estado. A partir daí, porcurar-se-ia a legitimidade do direito construído em diversas esferas ou, como diria uma expressão muito utilizada nestes meios, do direito achado nas ruas que pode chegar aonde o direito estatal não chega e, até mesmo, contradizê-lo.

Por via diversa, o Uso Alternativo do Direito consubstancia-se no conhecido Positivismo de Combate. É, na verdade, uma postura do profissional do direito que procura explorar as contradições do sistema jurídico afim de defender os interesses sociais das classes subalternas e oprimidas. Uma maneira de fazer a máquina do judiciário rodar suas engrenagens em um sentido que lhe seria estranho: a defesa dos trabalhadores. O Uso Alternativo do Direito não se preocupa em provar a legitimidade de relações que se demonstrem enquanto jurídicas mas que tenham sido postas por fora das regras impostas pelo Estado.

As diferenças são sutis, mas esta sutileza não justifica o entendimento, equivocado do meu ponto de vista, que as duas atitudes se complementam, ou de que são parte de uma mesma coisa. Este entendimento serve para confundir ainda mais as coisas, fazendo com que, novamente, o Direito Alternativo ganhe um status que não tem. Em verdade, aqueles que seguem o Direito Alternativo podem, tranquilamente, valerem-se, em sua prática diária, do Uso Alternativo do Direito, mas o contrário não é possível. O Positivismo de Combate não está preocupado em discutir quais as esferas legítimas de produção jurídica. Sua preocupação é a de utilizar as próprias rachaduras do monumento normativo contra a opressão que ele é capaz de infligir.

Por isso, a exploração da dicotomia entre ambas as posturas necessita de maior dedicação. Este texto não pretende esgotar o assunto, muito pelo contrário, é mais um registro de impressões gerais acerca do tema.

Em minha opinião, a confusão reside em uma distinção anterior a esta que precisa ser desvelada. A expressão Direito Positivo tem, hodiernamente, abarcado diversos significados diferentes. O primeiro dentre eles é o de Direito Estatal posto pelos homens segundo as normas de construção jurídica. Seria direito aquilo que esteja juridicizado pelos procedimentos estatais e pronunciado pelo Estado enquanto direito. Este conceito (aqui colocado de maneira extremamente débil) tenta resumir o direito ao que é juridicamente valorado pelo Estado, de acordo com os processos que o próprio Estado criou e que também são jurídicos. Na verdade, quando utiliza-se este conceito faz-se uma oposição direta ao conceito de Direito Natural.

O Direito Natural é uma corrente de pensamento que permeou o conhecimento jurídico durante séculos. Da Antiguidade Clássica ao início da Modernidade ele foi hegemônico nas reflexões filosóficas acerca do fenômeno normativo. Em essência, a teoria do Direito Natural coloca a figura jurídica como existente independente da atividade humana. Aos homens, caberia apenas interpretar a realidade e descobrir o que seria justo a partir da natureza das coisas. A longo dos períodos históricos o Direito encontrava sua origem na Natureza, em Deus, na Razão humana (que era o médium pelo qual os homens interpretavam o justo) etc. Desta forma, a humanidade não era a construtora da justiça, esta já estava posta na natureza, cabia, apenas, desvelá-la. Desnecessário dizer o quanto isto serviu às classes dominantes que, a partir daí, legitimavam sua posição no jogo produtivo das sociedades das quais participavam. O Direito Positivo surge, então, no momento posterior às revoluções burguesas európeias quando a humanidade passa a perceber-se enquanto sujeita de sua história.

Diferente do Direito Positivo no sentido acima descrito, é a Ciência Positivista do Direito Positivo. Apesar da aparente redundância este conceito, também comumente incluído no de Direito Positivo, não é sinônimo daquele. É possível perceber uma clara distinção entre objeto de estudo e método de estudo nesta relação. Se o conceito de que tratam os últimos parágrafos descreve apenas o objeto da Ciência do Direito, o segundo recai, basicamente, sobre o método que esta ciência deve utilizar para o estudo deste objeto. O positivismo científico passa a ser o método de estudo do Direito Positivo. O que significa dizer, passa a ser estudado, o direito posto pelo Estado, de uma maneira coerente com o método de aferição de conhecimento positivista.

Isto significa a construção de um conhecimento que toma enquanto estanque o objeto de estudo. O Direito passa a ser estudado separadamente da Sociologia, da História, da Filosofia, da Psicologia etc. Passa a produzir um ramo autônomo e suficiente de conhecimento. Além disto, o positivismo tráz com ele diversos outros aspectos como, por exemplo, o recuo do cientista frente ao objeto, a neutralidade ideológica etc.

O conhecimento de uma realidade histórica produzido de forma a deslocar seu objeto de suas relações com a totalidade do mundo humano é, claramente, fetichizado. O método positivista serviu, nas diversas esferas em que atuou , da Sociologia ao Direito, para esconder a realidade, enternizar a sua atual conformação (aquela que se traduz na sociabilidade burguesa) e, até mesmo, constituir uma legitimidade científica que lhe foi atribuída falsamente graças à sua pretensa neutralidade. Desta maneira, parece-me, é ao método positivista que devem dirigir-se as críticas de um movimento científico formado por juristas progressistas.

A corrente do Direito Alternativo leva, em última instância, a conclusões muito próximas da Ciência Positivista do Direito Positivo. Apenas como exemplo, é possível citar a eternização da forma jurídica. Tanto os positivistas quanto os alternativistas acreditam que o Direito sempre existirá enquanto existir sociedade humana. A diferença é que os primeiros ligam esta conclusão à de que sempre existirá Estado, enquanto os segundos trazem a reflexão de que o Estado não é necessário para o Direito, e, por isto, este é quem sempre existiu.

Ainda que por via diversa ambos parecem perder a reflexão fundamental a ser feita. Aquela que inclina-se sobre a origem da forma jurídica que só se constitui, em especificidade, com o advento do capitalismo. Quanto a isto, a tese de Pashukanis em "Teoria Geral do Direito e Marxismo" é de fundamental importância. Encontrando na circulação mercantil a necessidade da figura normativa o jurista soviético rechaça, de maneira magistral, qualquer possibilidade de um "Direito Proletário". Com o fim do sistema produtor de mercadorias, deixaria também de existir a própria necessidade que dá bases ao Direito: a de garantia de segurança para a exploração dos negócios. Não é a toa que o livro de Pashukanis foi proibido na União Soviética que, apesar de declarar-se comunista, ainda possuía um imenso arcabouço jurídico-burocrático a sustentar a exploração à qual estavam submetidos os trabalhadores em seu território. No entanto, a História do Direito parece vir a confirmar esta tese. Curiosamente os dois períodos humanos em que o Direito mais se desenvolveu, de forma específica, foram permeados por uma forte atividade mercantil. O mais evidente deles é o próprio Capitalismo. O segundo é a Sociedade Romana, que tinha no comércio um posto avançado de acumulação de riquezas. É evidente que isto não iguala os dois períodos históricos, posto que, na Roma Antiga, o escravismo era ainda a forma predominante de acumulação.

Por estas razões acredito que aqueles que intentem pensar o direito sob um viés realmente transformador precisam voltar suas críticas ao positivismo enquanto método. Desta maneira, poder-se-á abrir caminho para o cultivo de um segundo método de estudo da realidade humana: a dialética. Ou, mais especificamente, o materialismo histórico-dialético. Um método que tem como preocupação básica a construção de um conhecimento que explore o objeto a ser estudado a partir de suas articulações com o todo, e não como se esta fora fechado eternamente em sua própria lógica. Esta me parece ser a questão fundamental a ser enfrentada pela Filosofia do Direito de esquerda atualmente. Enquanto isto, na luta cotidiana contra as opressões do capital, o Uso Alternativo do Direito, o Positivismo do Combate, parece ser a melhor arma à mão dos juristas que se põe ao lado das lutas dos trabalhadores e dos oprimidos. Isto se dá porque, ao reconhecer o papel que os próprios homens têm na construção do ordenamento jurídico, o Direito Positivo dá um passo fundamental na superação do obscurecimento da realidade trazida pelo Direito Natural.



10 comentários:

Fabiano disse...

meu fio gosta de escrever visse...

Mário Júnior disse...

Eu não sabia o que era uma coisa e nem outra. Agora você me deu um conhecimento rudimentar da coisa.

Vejamos...

Direito Alternativo é uma forma de procurar legitimidade para ações que as Leis e o Estado não conferem comumente.

Uso Alternativo do Direito é um tipo de "positivismo combativo", que usa as Leis em favor da classe trabalhadora - quando possível.

Ambos são utilizados por juristas progressistas, mas numa escala tradicional de peleguismo, colocariamos o Direito Alternativo como "menos pelego", é isso? Ou não entendi nada?

E sobre o Direito Natural e o Positivo já tinha ouvido falar, em aulas de história.

No mais, pra que escrever "hodiernamente"? Custava grafar "atualmente"? Tá com o cu coçando pra fazer uma palhaçada dessas, é?

Mário Júnior disse...

Comentei atrasado em alguns posts. Depois você olha. Você ficou de me emprestar o filme "O Cheiro do Ralo", lembra?

Vai ganhar um comentário em sua postagem quando pagar a promessa...

Você também tem esse "O Rito"?

E pra não perder a piada: na imagem acima, Ana Dayse montada em Ivo Tonet! Ou seria Keka montada em Lucas Menezes?

Eli Magalhães disse...

Ontem, na mesa do bar, me chamaram de prolixo... já pensou?! Escrevi o texto meio sonolento... acho que por isso ele fala demais hehehe...

Acho que o Direito Alternativo é uma via que não tem como dar bons frutos para a classe trabalhadora, Mário. Como falei... sinto que há uma certa relação entre ele e o próprio positivismo enquanto método. Algo como aconteceu na URSS que quis convencer aos trabalhadores da existência de um Direito Proletário, para justificar sua auto-proclamação de comunista. Como eu disse no texto, essa postura a reflexão da origem da norma jurídica, que é recuperada pelo Pashukanis e que, graças a isso, conclui que, com o fim do capital, terá fim também o direito... mas falar especificamente do Pashukanis é assunto pra outro post...

Em tempos atrás eu teria postado este texto no Crítica ao Direito. :)

Eli Magalhães disse...

O Cheiro do Ralo está emprestado ao Lucas Farias, assim que ele devolver te empresto.

O Rito já está prometido para o André como consta dos comentários do post sobre o filme. Mas também posso te colocar na fila...

E continuando a piada "Me processem por favor": Não sei se parece mais com a Ana Dayse ou com a Cida da Adufal!

Mário Júnior disse...

Cida da Adufal...

Hahahahahahahaha!!!

isaac disse...

Quer dizer que minha opinião num vale mais? Eu acho essa identidade visual nova muito sem graça: a imediatamente anterior mais interessante. Mas posso perdoar dessa vez.

Thiago Pacífico disse...

Eli, eu não senti um confronto entre "Direito Alternativo" e "Uso alternativo do Direito". Vejamos: que o "método" do Direito Alternativo cai nos mesmos vícios que o Direito Positivo isso está demonstrado, mas como garantir que o uso alternativo do direito dará mais frutos à classe classe trabalhadora? Pague muito bem a um advogado, que defende até a alma o positivismo jurídico, para defender um trabalhador, e ele fará isso muito bem, utilizando de forma alternativa o direito.

Outra coisa: quando você diz "O Direito Positivo surge, então, no momento posterior às revoluções burguesas európeias quando a humanidade passa a perceber-se enquanto sujeita de sua história." O Direito Positivo não é uma evolução do Direito Natural? Na mesa de bar você disse que não, mas essa sua passagem desconfirma o que você tinha dito, salvo melhor juízo. Sabe-se que o Direito Positivo serve a uma classe, mas mesmo assim, não representou um avanço, assim como nas ciências naturais?

Eli Magalhães disse...

Thiago... quando disse que o Uso Alternativo do Direito serviria melhor à classe trabalhadora foi no sentido de demarcar como acho que um profissional do direito progressista deveria atuar. Ele serve melhor do que o Direito Alternativo. Isso não significa dizer que, em termos gerais o Direito possa servir aos trabalhadores... até respondo isso parcialmente no texto quando digo que os "alternativistas" acabam eternizando a forma jurídica.

Quando ao Direito Positivo... não entendi bem sua crítica... eu não acho que o Direito Positivo seja uma evolução do Direito Natural, vejo muito mais momentos de ruptura do que de continuidade. Mas, de qualquer maneira, ele representa, sim, um avanço frente ao Direito Natural, pelo que eu escrevi: representa que a humanidade passa a se entender como sujeita de sua organização societal.

Não sei se respondi bem...

renata disse...

estou deixando meu email para saber mais a respeito das correntes jurídicas relourenco2010@hotmail.com