Sobre a morte do Socialismo:

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Estava lendo este texto outro dia. Comenta aspectos interessantes a serem discutidos antes de ser esculpida a lápide do marxismo.


Vou procurar apontar alguns elementos que determinaram a derrocada da URSS e da equivocadamente chamada "experiência socialista" intentada neste século. Vou fazê-lo recorrendo a duas idéias centrais, deixando de tratar de inúmeras questões relevantes, mas não determinantes, que a brevidade deste texto não permite tratar:

1) Ao contrário do que apregoa a
irrazão hoje dominante, a experiência da URSS não concretizou valores essenciais do pensamento de Marx, mas acabou por efetivar a negação aguda dos elementos fundantes de seu pensamento.

2) As sociedades pós-revolucionárias
não conseguiram constituir-se enquanto sociedades socialistas; a ruptura iniciada em 1917 não foi capaz de romper com a lógica histórico-mundial do capital, apesar de contemplar, no âmbito dos recortes nacionais, dimensões anticapitalistas.

Comecemos pela primeira. São conhecidas as idéias de Marx a respeito das possibilidades de rupturas anticapitalistas: estas encontrariam solo fértil somente se as revoluções socialistas atingissem uma dimensão e uma processualidade universalizantes, a partir de um "alto grau de desenvolvimento" dado num "plano histórico-mundial". Sem isso, o "comunismo local", impossibilitado de desenvolver-se como "força universal", seria sufocado pelas próprias "forças do intercâmbio" mundial. Muito tempo depois, indagado sobre a possibilidade da revolução na Rússia, Marx acrescentou: pela "inserção no mercado mundial onde predomina a produção capitalista", a revolução russa poderá ser "ponto de partida" para o Ocidente, "de modo que ambas se completem".

Sabe-se que não foi esta a trajetória russa: uma revolução
singular, ocorrida num país atrasado, não teve como desdobramento a ocidentalização da revolução. Com as derrotas das revoluções do centro, especialmente a alemã, a revolução russa começa a vivenciar a tragédia. Se com Lenin, Trotsky e Bukharin, eram visualizadas dimensões desta tragédia, com Stalin a revolução russa atingiu a absurda condição de modelo que deveria ser seguido pelas demais revoluções. Daí para a também nefasta tese staliniana do socialismo num só país, e seus vários e cada vez mais equivocados desdobramentos, como o do socialismo nos países coloniais, dependentes, atrasados etc., foi um passo muito rápido. Objetivamente isolada, a revolução russa estava impossibilitada de romper com a lógica do capital; posteriormente, ao ampliar-se (sem revolução) para o Leste europeu e deste em direção à periferia do capitalismo, acentuava a tendência anterior. A efetivação de uma transição isolada ou subalterna para o socialismo era uma impossibilidade objetiva. Subjetivamente, sob o terror da era Stalin, o mito do "socialismo num só país" converteu-se em tese taticista com estatuto de cientificidade e de classicidade.

O resultado final disto está estampado em 1989: a derrocada e o desmoronamento final da URSS e dos países que compunham o falsamento denominado "bloco socialista", e que não conseguiram romper com a
lógica, o domínio do capital. Seus traços internos anticapitalistas (de que foram exemplos a eliminação da propriedade privada, do lucro e da mais-valia acumulada privadamente), foram incapazes de romper com o sistema de comando do capital, que se manteve através dos imperativos materiais; da divisão social do trabalho herdada anteriormente e só parcialmente modificada; da estrutura objetiva atrasada em seu início e obsoleta em seu desenvolvimento posterior; e da conseqüente generalização do reino da escassez. Seus vínculos com o sistema mundial produtor de mercadorias impediram que sua conformação interna com traços anticapitalistas se tornassem determinantes. Ao contrário, esses países curvaram-se à lógica da produção e do mercado sob o comando do capital. Na síntese de Mészáros, a União Soviética não era capitalista, nem mesmo capitalismo de Estado. Mas o sistema soviético estava totalmente dominado pelo poder do capital: a divisão do trabalho permanecia intacta, a estrutura de comando do capital (e não do capitalismo, na distinção decisiva presente em Marx e reafirmada por Mészáros) também permanecia. O Capital é um sistema de comando cujo o funcionamento é orientado para a acumulação, sendo que essa acumulação pode ser garantida por diferentes caminhos. Com um diagnóstico que contempla algumas similaridades, Mandel afirma que "a persistência da produção de mercadorias na URSS e em outras formações sociais similares é uma evidência decisiva de que... não há uma economia socialista nem uma sociedade onde os meios de produção estejam plenamente socializados ou mesmo em processo de socialização".

Outro autor
[Robert Kurz], em recente e polêmico ensaio, desenvolveu a tese de que o sistema soviético estava na sua interioridade impossibilitado de romper com a lógica do sistema global produtor de mercadorias e do trabalho abstrato. Depois de demonstrar que o "sistema de mercado planejado", seguindo sua própria lógica imanente, levou ao extremo todas as irracionalidades do sistema produtor de mercadoria, ao invés de começar a eliminá-las, acrescentou: a produção de mercadorias "do 'socialismo real', ao chegar no mercado mundial, [teve] que sujeitar-se às leis deste, independente de suas leis próprias... O mercado mundial, em primeiro lugar uma metaesfera da produção de mercadorias das economias nacionais, impõe progressivamente um contexto global à lei da produtividade, descrita por Marx".

Esses países, tendo a URSS à frente, com insuficiente nível de desenvolvimento das forças produtivas, apesar de configurarem-se como sociedades pós-capitalisas, foram gradativamente e crescentemente sufocados pela lógica histórico-mundial do capital; a
tentativa de transição socialista intentada neste século XX não foi capaz de quebrar o centro hegemônico do capitalismo e a partir daí iniciar efetivamente a desmontagem da lógica do capital. Em vez da associação livre dos trabalhadores, da omnilateralidade e da emancipação humanas, de que tanto falou Marx, vivenciou-se a crescente subordinação destes países aos regramentos próprios do capital e do sistema produtor de mercadorias.
Na verdade estas sociedades pós-revolucionárias constituíram sociedades híbridas, nem capitalistas nem socialistas, cuja transitoriedade embora tivesse um télos voltado abstratamente para o socialismo, foi objetiva (e subjetivamente) regredindo e acomodando-se ao sistema produtor de mercadorias em escala internacional. Penso que há uma certa similaridade, para fazermos um paralelo histórico, com as formações sociais que, à época da transição do feudalismo para o capitalismo, assumiram também uma conformação híbrida, que gerou inclusive um expressivo e controvertido debate no interior do marxismo. A diferença mais evidente é que naquele trânsito o capitalismo tornou-se, ao final do processo, vitorioso, diferentemente da transição intentada no século XX, que não levou à superação do modo de produção capitalista. O caso chinês parece exemplar: subsiste através de uma falaciosa "economia socialista de mercado", cada vez mais atada (e sintonizada) com o sistema mundial produtor de mercadorias e sustentada até não se sabe quando por uma autocracia partidária.

Quero concluir com três sintéticas indicações:

Primeiro: Os eventos de 1989 sinalizam uma nova era de crise aguda do capital bem como a possibilidade real de revivescimento de uma esquerda renovada e radical, de inspiração marxiana, que não poderá ser responsabilizado pela barbárie (neo)stalinista vigente naqueles países até pouco tempo. O movimento socialista também será beneficiado pela intensificação das contradições sociais nas formas societárias que estão se configurando na ex-URSS e demais países do Leste Europeu.

Segundo: a análise das experiências revolucionárias do século XX nos permite concluir que "a revolução social vitoriosa não poderá ser local ou nacional; somente a revolução política poderá confinar-se dentro de um quadro limitado, em conformidade com sua própria parcialidade - [a revolução social] deverá ser global/universal, o que implica a necessária superação do Estado em sua escala global". Do que se depreende que as ocorrências de revoluções políticas nacionais não levam à realização imediata e nacional do socialismo, uma vez que este supõe um processo ampliado e de dimensão universalizante.

Terceiro: as possibilidades reais de superação do capital ainda encontram como subjetividade coletiva capaz de efetivá-las a classe-que-vive-do-trabalho. Mais heterogênea, mais complexificada e mais fragmentada é, entretando, pela análise da sociabilidade do capital, o ser social ontologicamente ainda capaz de virar uma nova página na história.

ANTUNES, Ricardo. A prevalência da lógica do capital.
Para a revista Crítica Marxista, 1994.

7 comentários:

Mário Júnior disse...

O artigo completo é este? E por que a foto foi ilustrando "o caso chinês"?

Era muito melhor colocar uma daquelas estátuas gigantescas de Lenin sendo derrubada... :p

Eli Magalhães disse...

Este é o artigo completo, foi re-publicado no apêndice da 12ª edição do "Adeus ao Trabalho?".

Sobre a foto... é... bem... sei lá... me deu na telha essa...

Eli Magalhães disse...

Aliás, é o artigo completo retirando-se as referências a autores que o Antunes faz. As referências eram do tipo autor-data, por ex.: (Mészáros, 1982: 50-51). O que tornava elas de difícil entendimento para o formato do blog. E como daria muito trabalho e ocuparia um relativo espaço transferir as referências bibliográficas para cá, eu resolvi tirá-las. Fora isso o texto está intacto, até um erro de concordância nominal quando ele fala da esquerda "renovado", no fim do texto.

Mas relendo percebi que uma parte fica um tanto incompleta, que é aquela em que ele diz: "um outro autor". Sem a referência fica lacunoso. Não tinha percebido antes. Por isso, re-editei o texto, incluindo, apenas, o nome do Robert Kurz, neste parágrafo específico.

É isso...

Mário Júnior disse...

Pois é. Fui pegar minha edição do "Adeus ao Trabalho?" [9ª edição; 2003] e ele está no apêndice sim.

Vai da página 137 a 141.

Fabiano disse...

Eli, esse debate sobre a restauração do Capitalismo na URSS é de fundamemtal importância... no meu entender o Capialismo ja foi restaurado inclusive na China e em Cuba também, dessa forma penso que a foto da "experiência chinesa" faz algum sentido no post.

Algumas indicações de Leituras pra melhorar a análise:

1. A revolução traída - L. Trotsky
2. O veredito da história - Martín Hernandez

Quanto ao primeiro comentário dos três que o Antunes, coloca, o Nahuel Moreno já colova algo do tipo pouco antes da sua morte, em 1987, essa análise levou os morenistas a comenterem um erro grave logo após a queda do Muro de Berlim, por que na verdade análisaram o Moreno de uma forma mecânica...

De qualquer forma, se quiser aprofundar isso, eu tenho os dois livros, rs... abs

Eli Magalhães disse...

A foto dos tanques foi escolhida por ser exatamente do mesmo ano que a queda do muro. E meio que por representar que o "comunismo" chinês precisa de tanques para ser aceito pelos trabalhadores e pela juventude... enfim...

qual o erro cometido pelos morenistas?

Fabiano disse...

Nossa, rsrs essa é uma conversa que da um pano pra manga danado... quem sabe um dia a gente troca umas idéias sobre isso, hehe