Qual o cheiro da mercadoria?

terça-feira, 16 de dezembro de 2008


O Cheiro do Ralo (2007), é o segundo produto da parceira do diretor Heitor Dhalia e do quadrinista Lourenço Mutarelli. Em 2004, o cineasta pernambucano lançou Nina, que possuía cenas de animação preparadas pelo desenhista paulista em um filme com forte influência de Dostoievski (Crime e Castigo). Desta vez, no entanto, o roteiro da obra é uma adaptação do primeiro romance de Mutarelli, que possui o mesmo título da peça cinematográfica.

O romance apresenta traços inovadores na forma de como contar a história. Com uma proposital confusão entre narrador e personagem, diálogos e descrições, mais parece que o leitor possui em suas mãos uma história em quadrinhos tradicional. As frases são curtas e procuram descrever o máximo possível da percepção do protagonista nas diversas situações em que se encontra. A adaptação para as telas não poderia ter um outro resultado. Uma sequência de cenas lentas, com diálogos acelerados, de frases encolhidas, lembrando um pouco do Teatro do Absurdo. A direção de arte preocupou-se em aprofundar o sentimento do estranho no filme, construindo cenários e figurinos anacrônicos e pouco convencionais. O Cheiro do Ralo poderia ser até elencado como um revival do cinema Udigrudi brasileiro em razão da história que resolve contar. Porém, ao contrário das versões tupiniquins do cinema Trash americano, o filme de 2007 parece guardar um sentido maior em seu roteiro do que a simples construção de uma história quase sem pé nem cabeça.

Esta também é a segunda participação do ator Selton Mellon em um filme de Dhalia. Se em Nina interpretou o namorado da personagem principal, em O Cheiro do Ralo encarna Lourenço, o dono de uma loja de antigüidades que vive da compra e venda de artigos e do lucro daí advindo. A adaptação ao cinema da obra de Mutarelli encontra poucas diferenças de sua versão original, a maioria não importante para o essencial da história. Uma destas, é a imagem física do protagonista da obra. Lourenço (não por acaso, homônimo do escritor da história) é careca, magro e alto, o que o faz ser freqüentemente confundido com o personagem de determinado comercial da TV (provavelmente aquele de limalhas de aço). Mutarelli também participa como ator na película encarnando o segurança da loja de antigüidades, então basta fazer uma simples comparação entre ele e Selton. O ator mineiro é realmente diferente da descrição física original do personagem, mas conseguiu encarná-lo psiquicamente de uma maneira bastante convincente.

Lourenço vive, dia após dia, do lucro que retira de sua loja. Desta forma, acaba encontrando todo o tipo de pessoas que lhe levam os mais variados artigos, sempre contando uma história acerca daquilo que querem vender, na tentativa de valorizar o objeto. Para o dono da loja, é claro, as histórias e os sentimentos dos vendedores de nada valem para a realização de seus objetivos. Em uma cena memorável Lourenço pede ironicamente ao homem que tenta vender-lhe a caixinha de música que está em sua família há anos que escreva as histórias dela em uma folha de papel, para ele dar de brinde ao seu comprador.

Num de seus raros momentos de lucidez Lourenço consegue explicar o que o fez ter esta natureza. No início de sua carreira dava ouvidos às histórias dos vendedores, mas tinha que deixar isto de lado, tinha que comprar as coisas pelo menor preço possível e vendê-las pelo maior para conseguir sobreviver. Com o tempo, tornou-se insensível aos outros, incapaz de se relacionar com qualquer coisa que não fosse um objeto. Pouco lhe importa o significado daquilo que compra para aquele que o está vendendo. Aliás, pouco importa o valor-de-uso da coisa. Este está completamente submetido ao seu valor-de-troca. Para Lourenço, as outras pessoas são apenas meios para o atingimento de seus objetivos. Não é capaz de fazer nada pelos outros e ele mesmo diz que "nunca gostou de ninguém".

O roteiro da história corrobora com esta situação e aprofunda este sentimento no espectador atento. Todos os outros personagens, além de Lourenço, são identificados por sua função: o segurança, a secretária, o homem do violino, a viciada, a noiva etc. O protagonista tem a característica de transformar a todos em objetos, para que possa manter ligações com eles. Não consegue, aliás, perceber a diferença entre as coisas e os homens. Daí, sua loucura o leva à busca de um pai em meio às tranqueiras que lhe vendem (um olho, uma perna mecânica) e a se apaixonar por uma bunda.

Na lanchonete em que costuma comer conhece a bunda. Uma garçonete da qual ele não consegue, sequer, aprender o nome é a dona do seu novo objeto de desejo. A garota passa a se interessar verdadeiramente pelo homem, porém este é incapaz de levar a frente qualquer relacionamento baseado no afeto. Para que possa ter seu desejo atendido precisa transformar a garçonete em coisa, comprá-la e dispôr dela da forma como desejar. De nenhuma outra maneira interessa-lhe manter contato com a mulher.

O desenrolar do filme demonstra, de maneira caricatural, uma realidade à qual estamos todos submetidos. Viver sob um sistema produtor de mercadorias nos faz enxergar, no mercado, a única forma de apropriação de riqueza, ou seja, dos bens necessários à nossa sobrevivência e reprodução social. Com isto, o relacionamento entre os seres humanos é subordinado ao relacionamento que estabelecem com a mercadoria. Compramos os objetos sem nos importarmos com o que está por trás deles como se eles "fossem sozinhos aos supermercados". A esta relação que os homens cultivam com as coisas produzidas no sistema capitalista, ao invés de cultivá-la entre si, é que se dá o nome de fetichismo da mercadoria. Esta, a mercadoria, se demonstrou como a categoria abstrata que possibilitou a troca de valores no sistema do capital. Assim, somos capazes de submeter o valor-de-uso das coisas ao seu valor-de-troca. Isto porque, a própria forma de organização da produção submete a confecção de coisas úteis à produção de coisas rentáveis.

A partir daí, a forma da mercadoria consegue expandir-se pelas diversas esferas da vida social. Não apenas os produtos que saem das fábricas são transformados em artigos de venda. Junto a eles, são submetidos a esta forma de apropriação a maior parte das outras dimensões da existência humana. Mais do que comida, água e roupas, nos é possível comprar, ainda, educação, arte em geral, diversão, sexo, ciência etc. Todos devidamente transformados em mercadoria, para permitir o seu câmbio na sociedade em que vivemos, posto que assim, seus fornecedores também participarão da apropriação da riqueza através do mercado.

No fim, nos encontramos às voltas de uma produção cada vez maior de objetos, em sua maioria supérfulos, em uma forma societal irracional da sua origem às suas conseqüências. Tudo isto nos leva a uma vida de insatisfação e esvaziada de sentido. Para Lourenço, isto vai ser representado pelo cheiro do ralo do banheiro de seu escritório. Este é o seu sinal de que tem alguma coisa errada com o que anda fazendo. Por causa do cheiro do ralo ele não consegue descansar, não consegue ser feliz. De fato, algo cheira mal em nosso mundo e, em seu estilo caricatural, o filme faz com que este cheiro ganhe existência natural e represente a suspeita do personagem de que alguma coisa não vai bem. Não por acaso, apesar do incômodo que lhe causa, é possível ver Lourenço acostumar-se a ele, conviver com ele e, em determinadas situações, até procurá-lo, como quando, após pagar por sexo a uma mulher, ele rasteja até o ralo para sentir seu odor.

Se a arte "é uma mentira que nos faz ver a verdade", O Cheiro do Ralo é uma boa peça de arte por conseguir traduzir, em uma linguagem universal, uma particularidade de nossas vidas. É impossível odiarmos Lourenço pelo que ele se tornou. Ele é apenas um exageiro de sinceridade da forma como nós mesmos nos comportamos cotidianamente. Através do humor negro e da via cinematográfica, o filme consegue nos trazer à tona aspectos profundos do contexto histórico em que nos encontramos. Ao contrário do que a maioria dos que assistiram ao filme costumam dizer em seus comentários, O Cheiro do Ralo não é uma crítica ao simples consumismo da vida moderna. É uma crítica a um aspecto essencial do próprio modus operandi da vida moderna: a troca de mercadorias.


5 comentários:

Mário Júnior disse...

Eli, você acabou me despertando uma infinidade de curiosidades por ver o filme. :)

Eli Magalhães disse...

Pow, eu recomendo... também pode ler o livro que é legal, um tanto quanto curto... e tem uma linguagem bem diferenciada da tradicional... enfim... vê e depois me diz o que achou :)

Jorge lucas disse...

Assisti o filme ha pouco tempo, muito bom, bem diferente e inteligente, agora vamo ver se crio paciencia pra ver o livro :D.

Fabiano disse...

Preá, é mlehor ter paciência para LER o livro :P

na verdade foi um dos melhores filmes dos ultimos que eu assisti, e gostei muito da tua crítica... ;)

Mário Júnior disse...

Bacana Eli, valeu pela indicação.

Jorge Lucas, recomendo o mesmo que o Fabiano: paciência para leitura!