O incrível caso clínico da miopia mistificadora: ou a Veja entre Bolsonaros e Bresser-Pereiras.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Texto produzido para a revista eletrônica Crítica do Direito.

O incrível caso clínico da miopia mistificadora: ou a Veja entre Bolsonaros e Bresser-Pereiras.Link

postado em 07/05/2011 12:45 por Vinícius Magalhães Pinheiro
Eli Magalhães
NÚMERO 1 - VOLUME 2
2 a 9 de maio de 2011

O pior cego é aquele que não quer ver, diria a sabedoria popular. Mas o que dizer quando a perda de visão não é total? Quando há, em verdade, uma distorção do foco das imagens? E quando esta distorção é, sem sombra de dúvidas, proposital?

Lendo recente matéria da revista Veja, o leitor poder-se-ia sentir praticamente em uma república socialista. Pois, para a revista, vive-se, no Brasil, em um país onde não há direita. Ainda mais, não há direita organizada em partidos políticos. Para a Veja, “'livre iniciativa', 'responsabilidade individual' e 'valores morais' raramente são ouvidas pelos corredores do Congresso ou do Palácio do Planalto. As palavras 'social' e 'trabalhista' e 'socialista' aparecem na maioria dos nomes das legendas”.

Uma profunda lição de como não se fazer uma análise política, como se pode ver. Afinal, há muito que definir o espectro ideológico de um partido por meio do que significam as letrinhas que vêm depois do “P” não tem sido aconselhável para aquele que deseje entender a realidade da luta política de um país. O mais impressionante, é que o texto se contradiz profundamente ao analisar o papel cumprido pela discussão acerca da descriminalização do aborto durante o pleito eleitoral de 2010. A Veja diz que o “tema surgiu de forma quase clandestina, em discussões na internet e nas igrejas. O PSDB de José Serra veio a reboque, aproveitando-se do tema para criticar a petista Dilma Rousseff – que, por sua vez, se apressou em tentar apagar o passado e dizer que nunca havia defendido a legalização do aborto”.

Deixando de lado uma análise mais pormenorizada de como algum tema pode surgir clandestinamente na internet, a não ser que saia em sites como o Wikileaks, o que é central aqui é: como um tema tão marginal, praticamente não ouvido no Congresso, e que surge clandestinamente, consegue fazer com que as duas maiores legendas eleitorais de esquerda do país modifiquem seus discursos até o ponto de apressarem-se em tentar apagar o passado? Algo aqui não encaixa muito bem. O fato real, é que o tema nem é clandestino, nem apareceu tardiamente no debate nacional. Basta lembrar-se que já durante o Governo de Lula, as forças conservadoras do país, com o aval do então presidente, retiraram do PNDH-3, a descriminalização do aborto. E em um país com uma expectativa de que no próximo censo, o eleitorado evangélico cresça para 40%, uma campanha eleitoral recheada de obscurantismo não pode ser surpreendente para ninguém. Nem mesmo para a Veja. A “Carta ao povo de Deus” de Dilma Rousseff não guarda, infelizmente, nenhuma incoerência com a “era PT” na presidência.

O PNDH-3, por sinal, é uma das melhores provas de que a direita no Brasil existe e está organizada. Além da descriminalização do aborto, foram barradas outras medidas referentes, por exemplo, aos conflitos de terra, e aos assuntos inacabados da ditadura militar no país, como a abertura de arquivos. Ainda no decorrer destes debates, houve decisão judicial do Supremo Tribunal Federal em não revisar a famigerada Lei da Anistia que perdoa os torturadores brasileiros, mesmo reconhecendo-se que o país é signatário de convenções internacionais que classificam o crime como de lesa-humanidade. O STF preferiu correr o risco de uma sanção da OEA, do que tocar nos seus generais de centro (para a Veja, o espectro político do país vai até aí). E aqui, por exemplo, uma das figuras principais foi o então ministro da defesa Nelson Jobim, da legenda de centro esquerda (na classificação da Veja), PMDB, que compunha (e até hoje compõe) o governo, também de centro esquerda, petista.

Ora, há duas formas de certos debates não aparecerem no Congresso. Eles podem, por um lado não serem defendidos por nenhuma legenda política, é verdade. Mas podem, por outro, não serem questionados por ninguém. Como haver um debate que defenda apaixonadamente a livre iniciativa quando ela sequer é questionada? O Congresso não precisa mais posicionar-se acerca da mesma, pois esta está completamente assegurada no Brasil. Não a toa, em recente entrevista, Bresser-Pereira, ex-ministro de FHC, que liderou a reforma gerencial do Estado brasileiro, nome difícil para neoliberalismo, declarando que o PT assumiu o posto ocupado pelo PSDB ao chegar ao governo, comenta nos seguintes termos o bolsa-família: “Sempre acreditei piamente na competição (…) Na sociedade que vivemos, existe uma quantidade muito grande de pessoas cuja capacidade de competir é muito limitada (…) essas pessoas não são capazes de se defender da competição como devem”. Em suma, Bresser-Pereira, que recentemente se descobriu de centro esquerda, um dos grandes nomes das reformas psdbistas do país, é um grande defensor da competição, ou seja, da livre concorrência e iniciativa, analisando, nesse ponto melhor do que a Veja, que é exatamente isto que não está ameaçado em nenhuma das políticas dos últimos dois governos e deste atual. Bresser-Pereira poderia ter dado esta entrevista em 2002, com o lançamento da “Carta ao Povo Brasileiro” durante a campanha de Lula à presidência, em que o candidato afirma o seu compromisso de não modificar absolutamente nada das estruturas econômicas do país.

Diga-se de passagem, que mesmo as centrais sindicais que declaram apoio à atual presidenta petista estão cada vez mais abertamente defendendo a tão preciosa livre iniciativa. Em entrevista recente ao jornal Valor Econômico (13 de Abril), Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, filiado à Central Única dos Trabalhadores, disse: “Se ficarmos presos à CLT, travaremos uma série de avanços que são fundamentais para os trabalhadores e para as empresas”. E conclui que o “espaço para negociação no Brasil é quase inexistente, tudo é engessado pela legislação”. Ora, para que uma legenda de oposição precisa fazer qualquer estardalhaço em defender a livre iniciativa, quando até mesmo a proposta de FHC, de que o negociado seja mais válido do que o legislado, para reforma trabalhista já vem sendo defendida pelos setores sindicais governistas?

A Veja vê isso muito bem. No entanto, ela sofre de um incrível caso de miopia mistificadora, enfermidade que força com que o paciente, conscientemente, retire de foco as questões fundamentais de uma discussão para defender um ponto de vista claramente indefensável. Em um momento em que a principal ferramente política fundada pelos trabalhadores brasileiros assume o governo e lança mão de uma série de políticas que, abertamente, fundam-se na continuidade dos governos psdbistas anteriores, com o diferencial de ter forte capilaridade social legada por sua própria origem histórica, a direita clássica do país, identificada, como nem a Veja pôde negar, à ditadura militar, fica por sua vez completamente sem projeto e desnorteada.

Em um país em que a velha esquerda passa à direita, e o melhor exemplo recente é o apoio declarado do PCdoB ao governo de Gilberto Kassab em São Paulo, e a velha direita fica sem projeto político claro, sendo deslocada com bastante força do poder institucional central, figuras como Jair Bolsonaro ainda reúnem grupos fascistas para apoiar suas declarações racistas, machistas, homofóbicas e ditatoriais em plena luz do dia. Enquanto isso, a Veja sente a necessidade de publicar um texto do quase falecido politicamente Fernando Henrique Cardoso discutindo o verdadeiro “papel da oposição”. Uma tentativa desesperada de reorganizar a direita clássica em torno de um projeto de poder. Com uma pitadinha a mais de sabor, legado pela ilusão de rebeldia que estas “corajosas” e desvairadas afirmações dão àqueles que se prestam a acreditar nelas.

Quanto ao específico problema visão da Veja nem o leitor, nem o autor deste texto podem fazer grandes coisas. A preocupação agora deve ser atuar politicamente para que ele não se torne uma epidemia ainda maior do que já é no Brasil. Para tanto, trazer novamente o debate político aos seus eixos centrais é de primeira importância. Classifiquemos de direita aqueles que defendem os interesses do capital, das grandes empresas e da manutenção de stauts quo. A partir daí, veremos que é a esquerda brasileira que precisa se rearticular e reorganizar suas forças.

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