Criticar a democracia pode ser a melhor forma de defendê-la.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Texto originalmente produzido para a www.criticadodireito.com.br.
Importante lembrar a todos que o código já foi aprovado na Câmara Federal e se encaminha para o Senado.

Criticar a democracia pode ser a melhor forma de defendê-la.

postado em 14/05/2011 13:25 por Revista Crítica do Direito - RCD ELI MAGALHÃES


O recente impasse na Câmara dos Deputados acerca da reforma do Código Florestal acaba por tornar-se um interessante laboratório para que se perceba o real funcionamento deste fórum. Após quase quinze horas de negociações apenas dentre os deputados da base governista, o próprio líder do governo, Vacarezza (PT), vai ao púlpito pedir pelo adiamento das votações. Segundo ele, por um lado, o texto do relator Aldo Rebelo (PCdoB) estava alterado em relação aos pontos que teriam sido acordados anteriormente. Por outro, dentre deputados de partidos governistas, havia um movimento em direção a uma votação congruente com o destaque apresentado pela oposição DEM-PSDB. A votação foi adiada para a próxima terça feira, 17 de maio.


A proposta original de Aldo Rebelo continha como pontos, a flexibilização das APP's (áreas de preservação permanente) deixando que os estados tenham a prerrogativa de reduzir em até 50% a área de preservação da vegetação próxima aos rios (que varia de 30 a 500 metros), e definam se seria possível a exploração de topos de morros e encostas. Além disto, a proposta do deputado isenta propriedades de até quatro módulos rurais de qualquer reserva legal de vegetação original, podendo seus proprietários, portanto, desmatar completamente. Esta reserva legal varia entre 80% na região amazônica, 35% no Cerrado e 20% nas demais regiões. Por fim, outro ponto polêmico é a anistia dos desmatadores de um período de cinco anos para cá. Eles não teriam o dever pagar multas, ou de recompor a área desmatada segundo a proposta do “comunista”.


Os deputados governistas firmaram apenas um acordo: o de que a flexibilização das áreas de preservação permanente seria feito através de decreto presidencial. Segundo seu líder, o governo não concordava com a alteração isenção da reserva legal para propriedades de até quatro módulos rurais, mas “cedeu” isto nas negociações buscando consenso.


Os trabalhos da quarta feira, 11 de maio, foram encerrados em meio a uma verdadeira baixaria, com Aldo Rebelo sendo chamado de traidor pelos governistas, ao mesmo tempo em que acusava o marido de Marina Silva de contrabandista de madeira no Acre. E meio a tudo isto, fica a questão: por quê alterar o Código Florestal?


Como se pode notar facilmente, todas as alterações vão no intuito de permitir um maior desmatamento. O relator diz defender estas posições em prol dos pequenos agricultores que teriam problemas com a atual legislação. Coloca, ainda, que estas alterações são necessárias ao desenvolvimento da economia nacional, e que há, na verdade, um lobby do imperialismo contrário a isto. Aldo Rebelo, portanto, tenta passar um verniz de “interesse nacional” ou, se quisermos, “interesse universal” dos brasileiros às suas propostas. E, assim, louva tal processo “democrático” na tentativa de conquistar legitimidade para seu relatório.


Ora, em décadas a fio de mobilização de pequenos camponeses e de trabalhadores sem terra, pode-se recordar de uma tal oposição destes ao atual Código Florestal que data de 1965? Não cremos. Inclusive, frente à proposta do deputado do PCdoB, os movimentos do campo colocaram-se em defesa do Código de 1965. Assim declarou a Via Campesina:


A Via Campesina Brasil reafirma a sua posição pela manutenção do atual Código Florestal Brasileiro. Rechaçamos a proposta de alteração apresentada pelo deputado Aldo Rebelo, que incorpora as grandes pautas dos ruralistas, como redução de Área de Preservação Permanente e anistia das multas por desmatamentos”. (fonte)


Aldo Rebelo não mente em dizer que defende interesses. Sua desfaçatez está em querer fazer com que acreditemos que estes interesses advém dos movimentos camponeses. E eis uma tarefa ainda mais difícil, quando toda a bancada ruralista (incluindo a governista) se prepara para a declaração de uma sonora aprovação às alterações propostas. Os principais aliados do relator durante toda esta celeuma foram Kátia Abreu e Ronaldo Caiado (DEM), ruralistas declarados, e demais dirigentes da Confederação Nacional da Agricultura. Aldo Rebelo, por seu lado, teve doações de R$ 130 mil, de latifundiários, e R$ 70 mil, da Bunge Fertilizantes. Enfim, o “comunista” tornou-se fiel representante dos ruralistas, chegando a bater de frente com o próprio governo do qual é base aliada.


Os “interesses universais” caem por terra quando é notável que a alteração contém reivindicações históricas da bancada ruralista, representantes dos verdadeiros responsáveis pelo desmatamento para fronteira pecuária e expansão do agronegócio. Os valores que estão em jogo aqui são os interesses postos pela propriedade privada e pelo capital frente à preservação de algo que vem se tornando a dúvida das atuais gerações: o meio ambiente. Fica demonstrado que para o capital seus insaciáveis e incontroláveis impulsos de autovalorização são mais importantes do que a preservação da própria vida do planeta.


O Parlamento, que deveria segundo todas as teorias liberais, e segundo a forma como Aldo Rebelo defende sua proposta, pautar-se pelos “interesses universais”, abaixa sua cabeça frente à vontade de uma classe específica e que está em expresso confronto com as necessidades da ampla maioria. Aldo Rebelo cria um apoio popular imaginário para seu projeto. Cria também um rigoroso critério científico para o mesmo, mesmo quando entidades como a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência e a Acadêmia Brasileira de Ciência lançam longo parecer contrário às alterações propostas. E mesmo o Ministério Público Federal, baseado em parecer preparado por sua Câmara do Meio Ambiente, declarou-se contra as alterações e promete pugnar por sua inconstitucionalidade, levando o debate para o judiciário.


Ao mesmo tempo, o único acordo que o governo federal se dispôs a fazer é irrisório em relação à substância do texto proposto. O grande acordo que está por trás disto é que o desmatamento será aprovado, pois esta questão se colocou de fora das discussões na Câmara. As conversações a portas fechadas demonstraram que o capital e a propriedade privada foram mais “universais” do que o povo, a ciência e a justiça. É impossível não lembrar de palavras escritas há 168 anos sobre a democracia tal como está posta:


Mais enigmático se torna esse fato quando vemos que a cidadania de Estado rebaixa mesmo a comunidade política dos emancipados políticos a mero meio (…) que, portanto, declara o citoyen [cidadão] servidor do homme egoísta; degrada a esfera em que ele se comporta como ser genérico à esfera em que ele se comporta como ser parcelar; finalmente, não é o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois [burguês] que é tomado por homem verdadeiro e propriamente dito”. (Marx em Para a Questão Judaica).


Marx escreveu este texto em meio a uma polêmica acerca da possibilidade de os judeus, na Alemanha monarquista, terem acesso a direitos políticos e sociais. Ele viu como necessário a crítica da democracia para defender que os judeus fosse contemplados por ela, já que se imaginava que, por serem religiosos, não poderiam possuir direitos em um Estado que se pretendesse laico. Criticando a emancipação política, as revoluções democráticas que haviam ocorrido em França e na Inglaterra, ele demonstra que ela não se confunde com a emancipação humana, em que os homens estariam tão preenchidos por suas forças próprias, que não precisariam, por exemplo, da religião.


Marx, portanto, critica a democracia como uma liberdade parcial. Como meio caminho até a emancipação verdadeira. Critica a democracia para, ressalte-se, defender a sua própria ampliação, a sua extensão aos judeus. É justamente o caminho contrário a Aldo Rebelo, que louva-a, no intuito de reduzi-la, diminuir os direitos dos povos a um meio ambiente saudável. A proposta de Aldo Rebelo demonstrou como a crítica de Marx foi aguda. O cidadão, o homem público, foi degradado à esfera dos interesses egoístas do homem privado, do burguês. Esta situação ocorre constantemente, e continuará ocorrendo, enquanto as bases sociais da própria democracia forem a propriedade privada, o capital e a exploração do homem pelo homem. Conquistar a emancipação humana, é a chave para que a humanidade se livre dos interesses egoístas, e possa ter acesso a seus interesses universais. Dada a avançada destruição do planeta, em termos ambientais e sociais, esta é uma necessidade cada vez mais urgente. Enquanto isto, criticar a democracia, como demonstrou Marx, pode ser a melhor forma de defendê-la.

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