A luta socialista sob a democracia

domingo, 24 de outubro de 2010

Texto de debate com o Núcleo de Formação de Militantes Marxistas.

A luta socialista sob a democracia

Ou o local tático da luta democrática na estratégia socialista

A teoria revolucionária demonstrou, ao longo do tempo, os limites da democracia burguesa. Marx conseguiu, desde sua juventude, apresentar coerentemente a farsa da política dominante, baseada em uma separação entre vida pública e privada dos seres humanos, que, em verdade, funda-se na propriedade privada e na exploração do homem pelo homem.


O Estado aparece como a “vida etérea” dos homens. É tido, especialmente na democracia, como a representação dos interesses gerais da sociedade, onde o cidadão, podendo eleger e ser eleito, está apto a participar dos debates políticos com vistas a defender sempre o bem comum, o direito de todos. Mais do que isso, com o avanço das formas democráticas, o direito de voto e a condição cidadã foram cada vez mais expandidos, levando a crer que todos os homens são iguais.


E, de fato, são. Porém, na democracia política, os homens são iguais apenas formalmente. As condições reais de vida continuam dividindo-os e impedindo que se constituam enquanto autêntica comunidade humana. São antes, cingidos pelos antagonismos presentes na sociedade civil, que tornam o indivíduo um homem egoísta e, ao mesmo tempo, fazem com que sua representação genérica, o cidadão, esteja submetida a seus interesses mais privados e mesquinhos.


Este traço cruel é legado pelo fato de que, como disse Marx, ela representa apenas uma forma parcial de emancipação. Não há dúvidas que a superação do feudalismo e de seu Estado absolutista, representa um fato extremamente importante para a humanidade. A emancipação política não é desprezada pelos revolucionários; antes, ela é apreciada em seus caracteres reais, criticada em seus limites e vista como um estágio anterior à emancipação universal: a emancipação humana. Nesta última, superados os fatores objetivos que transformam os homens em anêmonas que se chocam umas com as outras, a divisão de classes da sociedade civil, poder-se-ia constituir, finalmente, individualidades genéricas, que, por sua vez, pudessem agir eticamente, preocupando-se finalmente com o bem comum.


A origem da democracia política, portanto, é o que a constitui enquanto uma emancipação parcial. Advinda das revoluções burguesas, dos processos de luta da nascente burguesia contra o mundo feudal e a nobreza, ela representa os anseios de uma classe em particular: os detentores do capital. A democracia nasce ao mesmo tempo em que são expropriados os pequenos produtores feudais, transformados violentamente de camponeses independentes em proletários miseráveis obrigados a vender sua força de trabalho para a conquista de seu pão. Ela é o desdobramento político do novo modo de produção. A forma política do capitalismo. Não é exagero, portanto, pensar na mesma como a ditadura da burguesia, sua forma de dominação sobre os trabalhadores exercida ora de maneira mais contemporizadora, ora recorrendo às mais cruéis formas de repressão. Mas nunca excluindo totalmente nenhum destes dois polos.


A cidadania, entendida como a capacidade de possuir direitos e deveres é para a burguesia, o direito à propriedade dos meios de produção e à compra de força de trabalho. Para os trabalhadores, significa o direito (obrigatório, é verdade) de contratar a venda de sua força de trabalho. O direito, em última instância, de ser explorado e nada mais.


Por estas razões, a luta socialista não deve ficar vinculada à democracia política. Essencialmente, o Estado burguês é a forma de dominação da burguesia sobre o proletariado sendo, portanto, impossível conquistá-lo, mudar-lhe seu conteúdo de classe e utilizá-lo para o avanço da construção do comunismo. Antes, ele deve ser desmantelado de seu início ao fim.


Isto, contudo, deve levar a formulação socialista a uma questão da mais crucial importância. Como visto, as dimensões da política, do Estado, da cidadania, possuem um caráter ontologicamente negativo, não podendo a ação revolucionária ficar confinada a seus limites. As formas do Estado burguês são suficientes para manter a classe trabalhadora eternamente sob sua dominação caso não consigam livrar-se de seus preconceitos democrático burgueses. O objetivo político dos trabalhadores é a ditadura do proletariado. A questão é, então, como desenvolver a luta política do proletariado sob a democracia política? E o que significa a ditadura do proletariado?


Parece importante precisar que as considerações acima representam os princípios da ação política do proletariado. Contudo, esta mesma ação deve sempre dialogar com a realidade particular, com o solo histórico e social em que é executada. Objetivamente, a democracia burguesa é dominante no mundo atual. Ao mesmo tempo, a ditadura do proletariado não pode ser construída enquanto a classe que deve dar-lhe seu conteúdo não se acreditar como capaz de tomar sob suas mãos os rumos da sociedade. Ou seja, até que o proletariado desenvolva a consciência de uma classe para-si, sua consciência necessária, não se pode falar em tomada do poder político pelo mesmo.


Isto é a ditadura do proletariado. A forma política da dominação da classe operária sobre a burguesia. A constituição da particularidade dos trabalhadores como a validade política geral, dominante, até que seja possível desvencilhar-se do revestimento político desta constituição. Até que seja possível, portanto, uma sociedade sem classes sociais, com igualdade substantiva e fundamentada no trabalho associado.


A revolução proletária deve, inevitavelmente, iniciar-se pelo choque com a burguesia enquanto classe universal. Esta aparente universalidade dos burgueses advém, justamente, de sua condição enquanto classe dominante. O operariado deve esforçar-se por destruir a dominação burguesa, retirar do posto da universalidade a classe dos exploradores e expropriá-la, política e economicamente. Assim, o proletariado deve estar apto para tomar o posto da universalidade, dominar politicamente a sociedade de classes que subsiste logo após a revolução socialista.


Se a democracia política não passa da ditadura burguesa sobre as massas oprimidas, a ditadura do proletariado não é mais do que a democracia proletária contra a burguesia. A forma política da ditadura do proletariado foi encontrada por Marx na experiência da Comuna de Paris. O Estado burguês foi, ainda que momentaneamente naquela ocasião, desbaratado e suas forças foram reabsorvidas pelo povo, que passou a decidir seu próprio destino. Não é isto muito mais coerente com a terminologia da palavra “democracia” do que uma igualdade completamente formal e um Estado aparentemente autônomo? Como disse Engels, seguido por Lenin, a tal experiência política não poderia sequer ser mais chamada de Estado. O único nome político próprio para a ditadura do proletariado é Comuna. Ela implica, como lembrou Rosa Luxemburgo, uma democracia infinitamente mais desenvolvida do que qualquer regime burguês pode oferecer.


Ao escrever sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx estava preocupado com a fundação da “verdadeira democracia”. Do regime político em que o homem pudesse, efetivamente, objetivar-se em sua existência genérica. Será arbitrário constituir a hipótese de que foi com a Comuna de Paris que o pai do materialismo histórico-dialético teria finalmente vislumbrado uma prévia do funcionamento desta democracia? Sem dúvida, os nexos mais profundos da obra política de Marx só puderam ser alcançados com suas conquistas no campo da economia política. E é com isto que ele apreende que a construção deste regime não pode fugir do solo da luta de classes e tem como ator fundamental o proletariado. Sua fundação é o primeiro objetivo revolucionário dos operários. Dominar a burguesia é sua primeira função.


A perspectiva proletária representa, portanto, um regime político superior, no sentido da emancipação humana, do que a democracia burguesa. E eis, aqui, a grande contenda. Os teóricos e políticos liberais tenderão sempre a identificar a vitória operária à mais cruel repressão. E estão corretos na medida em que relacionam esta repressão a seus direitos enquanto exploradores. Mas mentem ou, na melhor das hipóteses, equivocam-se, quando colocam que ela será expandida e executada contra todo o povo. No entanto, sua postura atual de classe dominante fará com que sua falsa explicação da Comuna, encontre eco mesmo na classe operária. Os burgueses estarão preocupados a todo momento em demonstrarem-se enquanto defensores imaculados da “democracia”. Pedir para que definam o significado desta palavra, no entanto, é inútil. Não o farão.


As experiências socialistas ocorridas no decorrer do século XX parecem confirmar a tese dominante. A degeneração burocrática em ditaduras cruéis que sofreram por seus limites objetivos de avanço rumo ao socialismo, pelas escolhas feitas por seus dirigentes e, posteriormente, pela restauração galopante do sistema do capital em sua grande maioria (com tendência a se tornar total) servem como uma base material para que a ideologia burguesa da “democracia” contra o proletariado ganhe força.


No entanto, nada mais contraditória do que a relação do liberalismo com a democracia durante toda a sua história. É necessário relembrar à classe operária que cada mínimo ganho democrático teve de ser arrancado das mãos da burguesia. Desde o sufrágio universal ao menor direito trabalhista, não foi sem luta que estas realidades foram construídas ao longo do tempo e nunca estarão eternamente garantidas. É certo que todas estas conquistas representam também, e em grande medida, uma margem de manobra ora mais larga, ora mais estreita, que a classe dominante possuiu para conter o movimento operário. Isto, porém, não serve para mudar o essencial: a burguesia é a verdadeira autocracia dos dias atuais. E denunciá-la coerentemente deve servir para fortalecer a consciência de classe necessária do proletariado.


É necessário apontar todos os limites da democracia política defendida pela burguesia. Desde os limites da legislação eleitoral, à efetividade dos direitos dos cidadãos, passando pela real atuação repressora do Estado de Direito. Estes limites terão de deparar-se com a propriedade privada, o trabalho assalariado, o Estado burguês etc. Enfim, com todos os fundamentos do regime capitalista.


Concomitantemente, deve-se entender que a democracia (entendendo-a de forma a não resumi-la à política) não é um objetivo abstrato das massas. O anseio por decidir seu destino, muitas vezes anuviado por preconceitos burgueses, é real e legítimo. Parece existir um sentimento democrático geral nos trabalhadores. Especialmente após terem contato com as formas mais declaradas de autocracia burguesa como as ditaduras militares da América Latina nas últimas décadas.


Os revolucionários devem saber utilizar este sentimento legítimo para esclarecer os limites reais da democracia política. Devem explicar aos operários que estes não poderão realmente decidir enquanto forem economicamente dominados pelos patrões, pelos banqueiros etc. Devem demonstrar que o mais brando regime democrático burguês difere apenas em forma, no que diz respeito a seu caráter de classe, da mais ferrenha ditadura fascista. É neste sentido que devem ser construídas as chamadas “pautas democráticas”: devem servir para que os trabalhadores percebam que, apenas com a ação revolucionária conseguirão, realmente, a constituição de um regime substantivamente democrático, substantivamente igualitário. O mesmo diz respeito à incansável denúncia das formas democráticas da burguesia, sempre tão contraditórias e limitadas, e de sua infinita disposição a retroceder os direitos dos trabalhadores. Luta esta que deve ser realizado nos exatos terrenos construídos por esta própria democracia burguesa (eleições, liberdades sindicais, liberdade de imprensa etc.).


Os trabalhadores perceberão em suas lutas diárias que não basta votar, nem eleger “políticos honestos”, nem avançar indefinidamente “a caminho da igualdade”. Perceberão que, a chave para a “verdadeira democracia” se encontra na universalidade que podem atingir enquanto classe e em sua perspectiva histórica necessária: o comunismo.

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