Chile: Mineiros não são heróis mas vítimas

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Texto do www.esquerda.net

Chile: Mineiros não são heróis mas vítimas

Mário Sepulveda, o segundo mineiro a ser resgatado declarou: Este país precisa entender que são necessárias mudanças” - Foto de Hugo Infante/Epa/LusaO alto perfil mediático do resgate fez esquecer que em 2009 foram registados mais de 191 mil acidentes de trabalho em todo o país, com 443 mortes. Por Daniela Estrada, da IPS

Mário Sepulveda, o segundo mineiro a ser resgatado declarou: Este país precisa entender que são necessárias mudanças” - Foto de Hugo Infante/Epa/Lusa

Santiago, Chile, 14/10/2010 – “Este país precisa entender que são necessárias mudanças”, disse na madrugada de ontem Mario Sepúlveda, o segundo mineiro chileno resgatado de um grupo de 33 que passou mais de dois meses preso a quase 700 metros de profundidade após o desmoronamento em uma mina da região de Atacama, norte do Chile. Mas, quais mudanças? Quais lições o acidente deixará para este país que é o principal produtor de cobre do mundo?


O alto perfil mediático do resgate, iniciado no final da noite do dia 12, fez esquecer que em 2009 foram registados mais de 191 mil acidentes de trabalho em todo o país, com 443 mortes. E no primeiro trimestre deste ano foram 155 mortos. “Os mineiros não são heróis”, como todos os chamam por suportarem mais de dois meses sob a terra, na verdade são “vítimas”, disse à IPS o sindicalista Néstor Jorquera, presidente da Confederação Mineira do Chile (Confemin), à qual estão filiados os trabalhadores da mina San José em Copiapó, Atacama.


“Depois do resgate de nossos companheiros, iremos com tudo para que os culpados respondam devidamente”, alertou o dirigente da Confemin, que reúne 18 mil trabalhadores da pequena, média e grande mineração deste país de 17 milhões de habitantes. Numa espectacular e inédita operação, acompanhada por centenas de jornalistas nacionais e estrangeiros e transmitido ao vivo pelas televisões de todo o mundo, na noite do dia 13, foi realizado o resgate dos mineiros – presos na mina desde 5 de Agosto –, com as presenças do presidente Sebastián Piñera e de vários ministros.


Para os críticos, o “Acampamento da Esperança”, levantado pelos familiares dos trabalhadores nas proximidades da mina, transformou-se no cenário de um reality show, que desumanizou o drama da insegurança desta indústria, colocando em primeiro plano os detalhes técnicos do resgate e as histórias íntimas dos mineiros acima do precário contexto do trabalho que propiciou o desabamento. Já são anunciados programas de televisão que seguirão durante meses os trabalhadores da empresa de mineração chilena San Esteban, além de livros e filmes.


Também surgiram críticas ao governo de aproveitamento político do caso, considerando a contínua presença do presidente na mina e a recorrente evocação de fortaleza dos mineiros nos seus discursos, como símbolos “do espírito chileno de luta contra a adversidade”. Perante o mundo, “o Chile apareceu muito bem pelos esforços de resgate e pela responsabilidade assumida pelo Estado”, mas o acidente “causou um tremendo dano à imagem nacional porque todos se perguntam o motivo de ter acontecido”, disse à IPS a académica Kirsten Sehnbruch, do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile.


Há uma mescla de negligências públicas e privadas, destacou Kirsten, acrescentando que “em qualquer país desenvolvido os donos da mina estariam presos”. Os dois chilenos proprietários da mina, situada numa zona desértica 800 quilómetros ao norte da capital chilena, estão a enfrentar acusações criminais por lesões corporais graves, relacionadas com um acidente anterior em que um mineiro perdeu uma perna, e estão sob ordem judicial para não deixar o país. “A alegria diante do resgate quase épico, produto da fortaleza e sabedoria dos mineiros de Atacama, obriga-nos a não esquecermos que situações como esta são absolutamente evitáveis”, disse à IPS María Ester Feres, directora do Centro de Estudos e Assessoria em Trabalho, Relações Trabalhistas e Diálogo Social da Universidade Central do Chile.


Basta recordar, segundo María Ester, que “só no ano passado, segundo dados parciais (das empresas filiadas a seguradoras), foram contabilizados mais de 191 mil acidentes de trabalho” no país. “Estamos a fazer uma revisão completa das normas de segurança”, não só da indústria mineira, como também de outros sectores, disse Piñera após a saída do primeiro trabalhador resgatado, Florencio Ávalos.


Segundo María Ester, o Chile não conta “com uma política de Estado nem com uma estrutura nacional, articulada, coerente e eficiente” em matéria de “segurança e saúde no trabalho”. E acrescentou que, “conhecendo o que ocorre na agro-indústria, na salmonicultura, no sector portuário, na construção, entre outros sectores, constata-se que o trabalho decente não constitui um objectivo estratégico do modelo de crescimento económico”. Trata-se de extensas jornadas, descanso insuficiente, baixa remuneração, informalidade e rotatividade no emprego.


O presidente Piñera criou em Agosto uma comissão sobre segurança no trabalho, integrada por técnicos, que deve apresentar suas recomendações no dia 22 de Novembro. Também anunciou a criação de uma superintendência de mineração, a reestruturação do Serviço Nacional de Geologia e Mineração, mais financiamento para fiscalização e a formação de outro comité assessor, também com especialistas, para rever o Regulamento de Segurança da Mineração.


Para Néstor, é preciso ratificar o Convénio 176 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre segurança e saúde nas minas, adoptado em 1995 e que entrou em vigor em 1998. “Contudo, não interessa ao governo por acreditar que isto não soluciona o problema”, acusou. Segundo María Ester, “as acções do governo não se voltam para a direcção correcta, já que formou uma comissão focada apenas na segurança do trabalho, sem ter entre os seus objectivos a análise do conjunto das condições de trabalho”. Tampouco incluiu o sindicalismo e outros actores importantes, ressaltou.


María Ester também criticou o facto de o sector empresarial ter “procurado centrar o problema somente nas pequenas empresas”. Os sindicatos dos mineiros questionam o governo por cortar o fio pelo lado mais fino, fechando pequenos e inseguros pirquenes (explorações quase informais) em Atacama, sem dar apoio para melhorar o trabalho. Apesar de a Confemin entregar uma petição ao governo junto com a Centra Unitária de Trabalhadores, e de outros sindicatos também estarem a organizar-se, Néstor está pessimista porque há problemas de fundo, como a estendida subcontratação.


Esta modalidade e a multiplicidade de razões sociais numa mesma empresa “externam os custos e os riscos do trabalho, além de atomizar e dificultar a sindicalização e a participação organizada dos trabalhadores na determinação e no controle das condições de trabalho”, disse María Ester. A lamentável “irresponsabilidade empresarial abriu uma grande oportunidade para que os trabalhadores denunciem e mostrem tudo o que se esconde neste país”, graças ao fato de os olhos do mundo estarem voltados para o Chile, concluiu Néstor.


Envolverde/IPS

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