Resenha: Que Fazer? de Lênin

segunda-feira, 1 de março de 2010

QUE FAZER?

Problemas candentes do nosso movimento

V. I. Lênin

- Edições Avante; 2ª Ed. -


Introdução

O presente trabalho não é mais do que a tentativa de organizar uma síntese sistemática dos pontos que julgamos relevantes na leitura da obra Que Fazer? do revolucionário russo Vladimir Lênin. Longe de representar um estudo de fôlego que busque investigar os nexos mais profundos do texto em questão, pretendemos aqui, tão somente, organizar as idéias formuladas a partir de sua leitura. A consulta ao texto original queda, portanto, indispensável para a resolução dos reais problemas acerca dos quais ele se debruça e em relação aos quais pode oferecer, ainda na atualidade (quase 110 anos depois de ter sido escrito), aclareamentos dos quais a esquerda socialista não se pode furtar.

Esta obrigatoriedade do texto leniniano é, provavelmente, o sintoma mais representativo de que aqui se trata de um clássico da teoria política do marxismo. Justamente por isto é impossível entrar em desacordo com Atilio Boron quando afirma que a incontornável politicidade da obra de Lênin faz com que a postura a seu favor ou contra não seja “uma questão acadêmica, mas antes um acto de vontade política”1. Assim, o debate aqui proposto jamais poderia pretender-se suficiente e a mera leitura de uma obra como tal implica, então, uma série de preocupações inolvidáveis.

A obra de Lênin, ao ser marcada por esta sua politicidade, é, em inúmeros de seus contornos, mérito de um esforço teórico-militante contínuo. Isto é mais uma qualidade do que uma limitação, já que a capacidade de interpretação da realidade e posterior síntese da mesma em escritos propagandísticos é uma demanda fundamental para um movimento socialista que se pretenda consequente. No entanto, não é possível deixar de preocupar-se com a diferenciação que, nas obras do referido autor, deve-se perfazer entre os nexos particulares e universais de seus escritos. O fato de escrever sempre levado aos fins de responder a um determinado contexto político o qual presenciava faz com que aspectos dos textos de Lênin sejam indubitavelmente datados, característica da qual o próprio não pretendia desvencilhar-se.

Portanto, é um dos objetivos deste pequeno estudo a apreensão, por ora, apenas dos nexos mais abrangentes da presente obra leniniana, bem como de oferecer propostas de interpretação para certos apontamentos por ela sugeridos. Nesta senda, teve-se de deixar de lado um estudo mais aprofundado acerca de cada uma das polêmicas nas quais o autor se envolve, levando-se em conta, tão somente, seus nexos mais gerais, ou seja: a luta contra o revisionismo e o trade-unionismo no seio do movimento socialista (na época da obra, social-democrata), aliás público maior do texto ora estudado.


Objetivos gerais de Lênin

Que Fazer? foi escrito entre o fim de 1901 e início de 1902. O contexto russo deste momento, principal, mas não única, preocupação da obra, apontava para um importante levante das contradições políticas existentes na sociedade autocrática de então. A Primavera de 1901 é marcada por uma série de movimentações de massas na Rússia, que envolviam de estudantes rebelados a movimentos grevistas diversos com especial ascenso da politização da classe operária. A preocupação de Lênin, no entanto, estava em fazer com que o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR, fundado em 1898) colocasse-se a altura das tarefas que uma tal conjuntura política punha a sua frente. Para ele, por inúmeras questões que buscou explorar, o partido (e, em certos casos, é ainda melhor dizer o “movimento” social-democrata) não tinha, ainda, evoluído para o estágio superior que o novo clima de mobilização demandava. Pelo contrário, havia mesmo tendências que se movimentavam no sentido de conservar o estágio embrionário que a Social-Democracia russa possuía.

Neste sentido, Lênin elege como os objetivos específicos de seu texto, tendo sempre como interlocutora a Social-Democracia Russa: “o carátcter e o conteúdo principal da nossa agitação política; as nossas tarefas de organização; o plano para a criação, simultaneamente e por diversos lados, de uma organização de combate de toda a Rússia”2.

Nota-se desde o prefácio da obra, portanto, que a mesma possui o claro fim de preparar o movimento socialista de então para os desafios aos quais teria de responder. Significa dizer que, para o autor, a questão organizativa dos socialistas não representaria mero detalhe, mas um ponto de reflexão estratégica para a superação do regime o qual combatiam. Não é exagero dizer, então, que a questão que estava posta era, qual tipo de ferramenta pode e deve ser utilizada pelo movimento da Social-Democracia revolucionária para a definitiva tomada de poder na Rússia? As respostas, como a leitura pode demonstrar, são oferecidas ao longo da brochura.

A ortodoxia teórica e autonomia revolucionária

Durante o primeiro capítulo o autor preocupa-se com o que, ao nosso ver, representa a delimitação de fronteiras da organização política revolucionária. Fronteiras estas, na verdade, que exprimem o ancestral embate no campo político da esquerda entre os partidários da reforma e os da revolução. Neste sentido, inclusive, o texto de Lênin permite-se, durante não poucas passagens, transbordar-se para além das fronteiras russas tratando de polêmicas relacionadas ao movimento social-democrata internacional, com particular acento para o bernsteinianismo.

O embate destas primeira formulações apresentadas na brochura dá-se, de um lado, na polêmica acerca da liberdade de crítica dentro do partido Social-Democrata, por outro, na demonstração da importância da clareza teórica para o movimento. Neste meio tempo, algumas considerações acerca das alianças políticas são formuladas que buscaremos explorar.

Durante o período em que é escrito o Que Fazer? havia se tornado especialmente atraente a palavra de ordem da “liberdade de crítica”. Reclamariam algumas tendências do movimento social-democrata a necessidade de manter aberto o quadro geral de debate interno de tal corrente política. Lênin busca demonstrar que a tal liberdade aqui reivindicada, na verdade, é a abertura de portas para a perda de claras delimitações do programa e da teoria revolucionários.

Os defensores da liberdade de crítica, assim, são, na verdade, defensores de interpretações que se colocavam em contraposição ao que eles próprios denominavam de “marxismo velho, dogmático”. Lênin faz questão de afirmar que esta questão estava, naquele específico momento, em voga não apenas na Rússia, mas em toda a Social-Democracia internacional3.

É assim que o autor busca a definição da tal liberdade de crítica:


Aqueles que não fecham deliberadamente os olhos não podem deixar de ver que a nova tendência 'crítica' surgida no seio do socialismo não é mais do que uma nova variedade do oportunismo. Se não julgarmos as pessoas pelo brilhante uniforme com que elas próprias se vestiram, nem pelo título pomposo que a si próprias se deram, mas segundo a sua maneira de agir e as idéias que de facto propagam, tornar-se-á claro que a 'liberdade de crítica' é a liberdade da tendência oportunista no seio da social-democracia, a liberdade de transformar esta última num partido democrático de reformas, a liberdade de introduzir no socialismo ideias burguesas e elementos burgueses”.4


O que busca, neste momento, o autor, é demonstrar como o debate entre a busca pela conquista de reformas sociais que, segundo pensavam seus defensores, deveriam levar ao socialismo, buscando, em suma, a colaboração entre as classes, e a via da tomada do poder revolucionário pelo proletariado não era, absolutamente, um debate interno à Social-Democracia. Era, na verdade, um debate entre o genuíno movimento socialista revolucionário e os elementos da consciência e da política burguesas presentes em seu interior. Ou seja, era um embate não entre dois pólos de um mesmo campo político, mas uma expressão da irreconciliável contradição de classes a qual manifestava-se no seio do próprio movimento contestatório do regime. E neste sentido Lênin é categórico em sua defesa de que estes elementos que expressam, na verdade, a postura das classes dirigentes deveriam, indubitavelmente, serem filtrados do movimento socialista. Isto independeria, inclusive, da força numérica que restaria ao movimento revolucionário.


Pequeno grupo compacto, seguimos por um caminho escarpado e difícil, de mãos dadas firmemente. Estamos rodeados de inimigos por todos os lados e temos de marchar quase sempre debaixo do seu fogo. Unimo-nos em virtude de uma decisão livremente tomada, precisamente para lutar contra os inimigos e não cair no pântano vizinho, cujos habitantes, desde o início, nos censuram por nos termos separado num grupo à parte e por termos escolhido o caminho da luta e não o da conciliação. E eis que alguns de nós começam a gritar: 'Vamos para o pântano!' E quando procuramos envergonhá-los replicam: “Que gente atrasada sois! Como é que não tendes vergonha de nos negar a liberdade de vos convidar a seguir um caminho melhor!' Oh!, sim, senhores, sois livres não só de nos convidar, mas também de ir para onde melhor vos parecer, até para o pântano; até pensamos que o vosso verdadeiro lugar é precisamente o pântano e estamos dispostos a ajudar-vos, na medida de nossas forças, a mudar-vos para lá. Mas nesse caso largai-nos a mão, não vos agarreis a nós e não mancheis a grande palavra liberdade, porque nós também somos 'livres' para ir para onde melhor nos parecer, livres para combater não só o pântano como aqueles que se desviam para o pântano!”5


Na opinião de Lênin esta tendência, na Rússia, inicia-se da própria absorção do marxismo naquele país. No nascedouro da reflexão marxista no território russo surgem, desde logo, tendências marcadas pela moderação a qual aplicam a teoria revolucionária. Dentre elas é utilizado o exemplo do “Marxismo-Legal”.

Tal corrente de pensamento tem sua origem histórica da década de 1890. Sua característica principal foi ter adotado a teoria de Marx de forma mecanicista o que a levaria a apagar dela todos os seus contornos revolucionários. Não por acaso o destino dos intelectuais desta linha foi o de voltarem-se contra o marxismo revolucionário, compondo, mais tarde, o Partido Democrata-Constitucionalista burguês. No entanto, no princípio do movimento social-democrata na Rússia, o “Marxismo-Legal” apresentou-se como um de seus aliados.

Lênin dá pinceladas dos princípios a serem seguidos nas alianças que os revolucionários devem fazer em sua atuação político-concreta a partir deste particular exemplo. Comentando a ruptura com os marxistas-legais ele afirmará que ela não se deve “evidentemente, ao facto de os 'aliados' se terem revelado democratas burgueses. Pelo contrário, os representantes desta última tendência são aliados naturais e desejáveis da social-democracia, sempre que se trate de tarefas democráticas desta”6. Para ele, no entanto, a condição indispensável para a conclusão desta aliança que os “socialistas tenham plena possibilidade de revelar à classe operária a oposição hostil entre os seus interesses e os interesses da burguesia”7.

O próprio punho de Lênin parece vigoroso o suficiente para a dispensa de qualquer comentário. Contudo, é imperativo notar a ineliminável conexão entre os dois pressupostos apresentados. Se em uma mão o político russo deseja bem demarcar as reais divisões dentro do espectro político vigente no momento em que escrevia, do outro demonstra como esta clara demarcação torna-se necessária de um ponto de vista estratégico incontornável. O que Lênin afirma categoricamente aqui é que há algo do qual o movimento revolucionário não pode abrir mão: a autonomia política do proletariado. Sua preocupação principal é a de que, justamente este movimento de arrefecimento do aspecto da Social-Democracia que aponta para a superação radical da atual forma de sociabilidade, que se baseia numa política colaboracionista entre as classes sociais antagônicas, acabe por transformar os socialistas e o próprio proletariado em um mero “apêndice dos liberais”8. Ou seja, abandonar o combate pela transformação social para os estreitos limites das refomas possíveis dentro das margens da própria democracia burguesa.

Neste itinerário, a tarefa daqueles que desejassem, verdadeiramente, combater o oportunismo no seio da Social-Democracia seria, justamente a retomada do trabalho teórico. Concomitantemente, é necessário empreender uma atuação enérgica contra as dispersões do trabalho prático impedindo quaisquer movimentos que apontassem no rebaixamento do programa e da tática daquela. Em contraposição a isto, os mesmos defensores da liberdade de crítica eram partidários de um combate ao que chamavam de “ossificação do partido”9.

É dizer: colocavam-se contra um consequente trabalho teórico empreendido pela Social-Democracia em vias de armar ideologicamente o movimento. Através de um eloqüente silêncio em torno das questões teóricas, os partidários da liberdade de crítica, verdadeiramente, não buscavam a “substituição de uma teoria por outra, mas a liberdade de prescindir de toda a teoria coerente e reflectida”10 levando o movimento ao ecletismo e à falta de princípios claros de atuação.

É neste momento que Lênin irá proferir sua célebre frase: “Sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário!”11. Há implicações importantíssimas nesta reflexão as quais só poderemos apontar introdutoriamente. Em primeiro lugar, a postura leniniana é um claro repúdio ao praticismo revolucionário do qual as organizações políticas de esquerda sempre correram o risco de tornarem-se reféns. A preocupação teórica implica um irrenunciável freio à prática frenética a que se jogam grande parte dos militantes tornando a corrente política revolucionária um poço de infindáveis repetições de fracassos quando, por sua própria natureza, ela deveria representar uma imponente fonte de criatividade e capacidade de contorno de obstáculos.

Em segundo lugar, o contexto da obra de Lênin permite a interpretação de que sua luta contra o revisionismo no seio da Social-Democracia representa um dos pólos de uma conexão lógica da qual a outra é, exatamente, a defesa do Marxismo Ortodoxo. Não se trata aqui de nos aprofundarmos na questão do que representa esta expressão. Basta entender que a preocupação leniniana expressa em repudiar o ecletismo no seio do pensamento teórico revolucionário, atada a indiscutível preocupação com a intermitência do trabalho teórico, representa, na verdade, não uma crença cega e dogmática na teoria de Marx. Pelo contrário, há aqui uma profunda reflexão metodológica frente à qual o teórico revolucionário não pode se furtar: de um lado pôr-se aparatado do ponto de vista teórico mais adequado para a interpretação do movimento real, a partir de uma opção clara e irrenunciável pelo método materialista histórico-dialético; de outro, prevenir-se, em sua própria atividade de formulação, do risco posto pelo ecletismo, desta vez no campo gnosiológico, de proceder, uma vez mais, à conciliação entre os irreconciliáveis interesses e pontos de vista de classe, o que levaria a um reflexo deformado da realidade.

Por fim, apesar de não expresso nas próprias palavras de Lênin, o fato de que as conclusões a que se pode chegar a partir da postura apresentada do autor, parece nos permitir a interpretação de que o mesmo possuía uma formidável clareza de que, além de não haver movimento revolucionário sem teoria revolucionária, não haveria, dialeticamente, também, teoria revolucionária sem movimento revolucionário. A perspectiva do Marxismo Ortodoxo, a esta altura já defendida pelo dirigente social-democrata, não se encontraria completa se dela não fosse decorrência necessária a postura teórica a partir da perspectiva da classe proletária. Neste sentido, a evolução consciente do movimento da contradição em que a classe trabalhadora se encontra em relação ao Capital, faz impulsionar, seja a partir de novas demandas, seja a partir do aclaramento de novos objetos e perspectivas teóricos, a própria teoria revolucionária que, por sua vez, retorna ao movimento munindo-o do aparato interpretativo necessário para a formulação de suas tática e estratégia. E, neste sentido, apenas uma compreensão teórica de vanguarda permitiria a construção de um partido de vanguarda12, o que será novamente explorado mais adiante.

De conclusão a este primeiro embate levado à frente por Lênin, não parece demais resgatar que sua preocupação principal aqui é a do resguardo da autonomia do movimento revolucionário. Se, em suas primeiras linhas, esse resguardo se dá no campo político, com uma discussão acerca do que deve ser aceito frente ao movimento revolucionário e mesmo das alianças que lhe são possíveis, nas conclusões de suas demonstrações o autor prova que, sem que essa autonomia seja conscientemente construída concomitantemente no campo teórico, a sua expressão concreta encontrar-se-á perenemente ameaçada. Esta é a linha de pensamento que acreditamos apresentar a chave para a compreensão de toda a presente obra em seus nexos mais fundamentais.


O culto à espontaneidade

Na sequência da obra o autor levará a cabo um aprofundamento do que já antecipara. Aqui, a clareza teórica e de princípios é a mais importante chave para a polêmica acerca de como se deve tratar a consciência espontânea que brota nas massas em luta.

A classe trabalhadora, por conta do próprio papel por ela ocupado no palco da produção econômica, entrará, invariavelmente, em contradição com o patronato. Isto dará margens à luta econômica a qual o autor em discussão caracterizará a partir de Engels: a “luta econômica prática” ou “resistência aos capitalistas”13. Seria, em suma, a luta por uma forma mais vantajosa de vender a mão-de-obra ao Capital, a luta sindical mais propriamente dita. Em Lênin, esse elemento espontâneo expressa-se como a “forma embrionária” do movimento consciente14. Um embrião da luta de classes.

O autor utiliza o exemplo das greves ocorridas na Rússia na década de 1890. Durante estas movimentações laborais, os operários demonstraram claros vislumbres de consciência. De um lado, a aparente imutabilidade do regime ao qual estavam submetidos desmoronava, deixando aberta a possibilidade de se tornar, se não consciente, pelo menos sensível a necessidade de uma resistência coletiva por parte dos mesmos. Nestes contextos de mobilização os operários foram capazes de formular reivindicações e pautas a serem atendidas pela patronal e mesmo pelo governo. Mesmo este relativo grau de conscientização não deixa de ser entendido como um movimento espontâneo por parte do proletariado.

A interpretação que Lênin quer passar é a de que a classe operária, em seu cotidiano, percebe, cedo ou tarde, a necessidade de se organizar por alguma pauta específica de seu contexto de trabalho. Esta percepção leva à frente algum mínimo grau de organização para possibilitar a conquista de vitórias durante a mobilização que passa a se construir. É dizer, a espontaneidade é um dado objetivo do movimento de massas, não algo a ser louvado ou rejeitado. É assim que o autor se coloca em declarada contradição com as tendências da Social-Democracia que em seu programa buscavam adequar-se às “necessidades do proletariado” e, assim, rebaixar-se à mera política sindical, trade-unionista.

A luta trade-unionista não chegaria a alcançar o nível da luta de classes. Aqui se faz importante uma pequena discussão. Nesta obra de Lênin, a expressão luta de classes é, parece-nos, sinônimo, apenas, de luta pela revolução política. Preferimos esta expressão do que entender como a luta revolucionária, ou mesmo a luta política. Lênin contrapõe a luta de classes à luta trade-unionista15 esclarecendo, na mesma oportunidade, no entanto, que a última não exclui completamente uma luta política dirigida contra o governo. A luta de classes seria, então a luta entre as classes pelo poder político, não a luta entre elas nas fronteiras deste mesmo poder. Isto permite a interpretação de que se trata aqui da luta revolucionária. No caso, contudo, não se trata da luta revolucionária em âmbito amplo, por uma alteração sócio-metabólica global, mas a luta que leva à desestabilização do poder político da classe dirigente passando-o à mão da classe dominada como um passo fundamental para a resolução desta alteração.

Neste sentido, a luta sindical, que brota do próprio cotidiano no movimento laboral, não pode alcançar a luta pela revolução política, pois seus objetivos imediatos não a colocam frente a esta processualidade espontaneamente. Aqui chega-se a um trecho polêmico da obra leniniana. O revolucionário russo irá declarar peremptoriamente: “os operários nem sequer podiam ter consciência social-democrata. Esta só podia ser introduzida de fora”16.

Sem dúvidas, este trecho pode com muita facilidade ser mal interpretado. Retirá-lo de uma exegese sistemática da obra de Lênin pode levar a conclusões (para os simpáticos e os opositores) de concepções meramente dirigistas na obra em discussão. Interpretação, no entanto, equivocada. O autor não tem pudores em declarar que a própria fundação da teoria revolucionária encontra seu berço na intelectualidade burguesa radical. E ainda neste sentido, na própria Rússia, esta evolução teria sido dada sem um contato orgânico com o movimento operário.

A questão se põe em outro patamar, contudo. O que o texto leniniano vem a colocar aqui não é que a teoria revolucionária venha do fora do proletariado como uma perspectiva estranha a ele. Pelo contrário! Como visto, a sua escolha pela defesa do Marxismo Ortodoxo estaria, aí, completamente em contradição caso entendesse que a teoria revolucionária nada mais é do que a teoria burguesa construída para o proletariado. A teoria da revolução é, invariavelmente construída pelo sujeito histórico do proletariado, ainda que o indivíduo concreto que a formule não pertença, ele próprio, à classe em questão. De fato, apenas a partir da entrada em cena da classe operária e, com isto, do surgimento objetivo de sua perspectiva (mesmo que esta perspectiva não se tenha tornado consciente para a classe em-si), é que se pode erigir o monumento teórico que visa à superação da sociabilidade do Capital. A consciência de classe é um dado objetivo, ainda que não atual, posto que o interesse da classe diz respeito direto ao seu papel no jogo sócio-histórico material, ainda que esta não tenha se apercebido disso enquanto classe17.

No entanto, já neste momento, Lênin percebe que o cotidiano da classe trabalhadora não permite que seja ela, enquanto sujeito histórico concreto, ou mesmo que os seus membros específicos (apesar de não negar esta possibilidade18), aquela a elaborar a teoria que lhe serve de arma ideológica e que, em última medida, explica a sua realidade e as possibilidades de superação da mesma. O próprio exercício teórico-científico, como mais tarde demonstrará Lukács, exige um distanciamento do cotidiano para um posterior retorno reflexivo ao mesmo. Comentando este específico trecho da obra de Lênin, diz o filósofo marxista húngaro:


Lenin muestra, respecto de la espontaneidad de los movimientos económicos de la clase obrera, que les falta precisamente la consciencia de las más amplias conexiones sociales, de las finalidades que rebasan la imediatez; a los obreros em huelga espontánea de la Rusia de comienzos del siglo XX tenía que faltarles, dice Lenin, 'el conocimento de la contraposición irreconciliable entre sus intereses y el régimen politico-social existente', o sea, la comprensión de las ulteriores consecuencias necesarias de su propia acción. (…) Al desarrollar Lenin su crítica político-social de la espontaneidad em el sentido de que la recta consciencia no puede 'enseñarse a los trabajadores sino desde fuera' esto es, fuera da lucha economica, 'desde fuera de la esfera de las relaciones entre los obreros y los empresarios', desde fuera del entorno inmediato, de las finalidades inmediatas de los trabajadores mismos, (…) el 'desde fuera' de Lenin es el mundo de la ciencia”19.


Esta citação do Lukács demonstra a real intenção da tese leniniana. Ao afastar-se do cotidiano da classe o indivíduo é capaz de produzir reflexos condizentes com as exigências da objetividade científica necessária para correta interpretação da realidade por parte da teoria. Não é possível aprofundar a questão da relação entre cotidiano, história e ciência, mas por ora, basta dizer que a ciência queda como um complexo relativamente autônomo que necessita de uma quebra do decorrer cotidiano para cumprir exatamente as funções que o próprio cotidiano lhe lega. E neste sentido, Lênin entende, perfeitamente esta questão. Por isto, o operário que formula teoria revolucionária é, no momento desta formulação, um teórico e não um trabalhador.

Esta questão é apresentada por Lênin de maneiras muito mais concretas do que por Lukács, no entanto. Para o russo, a espontaneidade pode levar os trabalhadores, unicamente, para a ideologia burguesa. Para ele, a inclinação ao elemento espontâneo das massas operárias é sinônimo, na verdade, de deixar refém da ideologia da classe dominante, largamente mais difundida no cotidiano social, bem como protegida pela maior parte das instituições com as quais o indivíduo concreto tem contato. Interessante atentar para o fato de que, apesar desta percepção coerente com o próprio Marx em sua A Ideologia Alemã, Lênin não teria como ter tido acesso a este texto específico no momento da elaboração do Que Fazer?. Assim, a inclinação ao aspecto espontâneo do movimento operário “significa – independentemente da vontade de quem o faz – fortalecer a influência da ideologia burguesa sobre os operários”20.

Não haveria, na interpretação leniniana, algo fora da alternativa historicamente posta entre ideologia burguesa ou ideologia socialista. Neste sentido, o que não fortalecesse a ideologia socialista, automaticamente estaria do lado do fortalecimento do campo de influência burguês. A rendição trade-unionista, “economista” à luta cotidiana do proletariado nada mais representaria do que a “política burguesa para o proletariado”21.

Ideologia aqui, por sinal, não se confunde com falsa consciência. Pelo contrário, a ideologia pode, neste contexto, representar, justamente, a consciência de classe em seu mais claro esplendor. No caso em questão, a ideologia é, justamente, a auto-compreensão que a classe tem de si-mesma, que pode ser limitada apenas pelos próprios interesses históricos da classe em questão. Ideologia burguesa é a compreensão burguesa da própria burguesia e, como reflexo, de todas as outras classes e questões relacionadas ao ser social. A ideologia socialista será, por sua vez, a compreensão proletária do próprio proletariado, bem como a sua visão de mundo ontologicamente fundada em seu papel de classe. Pelo próprio interesse em revelar a realidade de desigualdade à qual o regime burguês submete a humanidade, a perspectiva proletária (ou, neste caso, socialista) é a única que pode refletir fielmente a realidade objetiva. Nada disto impede, claro, que no desenrolar histórico-concreto elementos de ambas as classes adotem perspectivas antagônicas à sua origem. A classe enquanto sujeito coletivo, contudo, não pode apresentar esta postura.

A conclusão de Lênin, então, não poderia ser outra: “Por isso, a nossa tarefa, a tarefa da social-democracia, consiste em combater a espontaneidade, em fazer com que o movimento operário se desvie desta tendência espontânea do trade-unionismo de se acolher debaixo da asa da burguesia e em atraí-lo para debaixo da asa da social-democracia revolucionária”22. O “combate” aqui não se trata de repúdio à espontaneidade, como visto, um dado simplesmente objetivo do processo de lutas, mas de um combate ao seu culto e ao rebaixamento da política social-democrata a apenas o seu nível.


O Trade-Unionismo, o “Economismo” e o Terrorismo

As formulações apresentadas anteriormente servem de fundo para uma cada vez maior concretude das discussões apresentadas no Que Fazer?. A demonstração da importância da tarefa de formulação teórica demonstra seu desdobramento na luta contra o culto à espontaneidade. Por outro lado, esta última polêmica tem, no fundo, a preocupação de impedir, mais uma vez, que o proletariado caia sob as asas da burguesia. Não é demais lembrar, o objetivo, por fim, é, precisamente, preservar a autonomia política do movimento operário frente ao seu antagonista fundamental.

É neste sentido em que se coloca a luta contra o “economismo”. Esta corrente, nada mais é do que a expressão histórico-concreta das tendências apontadas por Lênin discutidas acima. Para os “economistas” a tarefa da Social-Democracia seria “imprimir um caráter político à própria luta econômica”. Como já discutido, as concepções apresentadas na obra discutida demonstram que a luta econômica, ou seja, a luta trade-unionista, não está absolutamente desencontrada com a luta política. Pelo contrário, existe uma expressão claramente política desta luta, quando os trabalhadores elevam suas reivindicações a garantias que deveriam ser oferecidas pelo próprio governo.

Mais do que isto, para Lênin, é a polícia quem, costumeiramente, perfaz a melhor elevação à política da luta econômica23. No momento em que esta reprime as manifestações classistas por melhores condições de trabalho ela coloca a classe diretamente contra o Estado autocrático que a oprime. No entanto, o caráter político da luta trade-unionista não é mais do que a luta por reformas que tornem mais vantajosa a venda da força de trabalho. Quanto a isto, Lênin não apresenta dúvidas:


A social-democracia revolucionária sempre incluiu e continua a incluir no quadro das suas atividades a luta pelas reformas. Mas usa a agitação 'econômica' não só para exigir do governo toda a espécie de medidas mas também (e em primeiro lugar) para exigir que ele deixe de ser um governo autocrático. Além disso, considera seu dever apresentar ao governo esta exigência, não só no terreno da luta econômica mas também no terreno de todas as manifestações em geral da vida política e social. Numa palavra, subordina, como a parte ao todo, a luta pelas reformas à luta revolucionária pela liberdade e o socialismo”24.


Esta questão põe em jogo concretamente, então, o primeiro dos problemas que Lênin declara intentar enfrentar ao organizar seu texto: o caráter da agitação política da Social-Democracia. Para o revolucionário, como demonstrado, o que está em jogo não é a mera conquista de direitos para a classe trabalhadora vender melhor sua força de trabalho, mas o fim do regime que força com que os despossuídos tenham de subordinar-se aos proprietários.

Os “economistas” julgavam que o meio “mais amplamente aplicável” para a agitação da Social-Democracia fossem, justamente, as denúncias econômicas, ou seja da exploração concreta das fábricas. Escondiam, através da argumentação de que era necessário apresentar à classe trabalhadora “resultados tangíveis”, um rebaixamento programático e tático do partido Social-Democrata. Deixava-se de lado, portanto, a luta pela superação do estado de coisas, para optar-se por uma macia adequação a ele. A política trade-unionista seria, por isto mesmo, a política da conciliação com a burguesia. Em contramão, a concepção leniniana demonstra que não há qualquer razão para acreditar-se nisto.

Em primeiro lugar, as denúncias econômicas não eram, por nenhuma razão especial que fosse, o meio mais amplo de agitação para os revolucionários. Representava, antes disto, apenas um meio a mais para a realização desta agitação. Em adição a ela, deveriam os sociais-democratas construírem denúncias concretas acerca de todas as outras questões candentes do tráfico social a fim de proceder a uma verdadeira educação política do proletariado. Em verdade, construir as denúncias em torno, tão somente, da luta econômica, na tentativa de imprimir-lhe um caráter político, era dizer ao operário o que ele já sabia. A verdadeira educação revolucionária do proletariado buscaria fazer com que este pudesse passar a entender a sua relação com todas as outras classes e com o Estado. Apenas assim, julgava Lênin, poder-se-ia “elevar a atividade da massa operária”25 passando esta a contar com verdadeira consciência política.

O terrorismo assemelhava-se, neste aspecto, ao “economismo”. Escolhendo uma linha de menor resistência, ambos cultuavam, a seu modo, a espontaneidade da classe. De um lado, o “economismo” não indo além da organização das denúncias econômicas apenas seguia a própria movimentação que os trabalhadores já fariam sem que eles se fizessem presentes. Os terroristas, por sua vez, intentavam incentivar a ação revolucionária da classe a partir de ações individuais levadas a frente contra o Estado autocrático.

Na prática, o que ambas as tendências deixavam de lado era a educação política da classe. Na verdade, subestimavam a atividade revolucionária das massas26. Em sua atividade política deixavam de lado uma tarefa que Lênin contornaria como insubstituível em qualquer momento: a da organização de denúncias políticas com o fim de educar politicamente os operários.

Estas denúncias deveriam ser construídas em todos os terrenos. De maneira alguma deveriam estar rebaixadas, meramente, a resultados tangíveis, mas, pelo contrário, deveriam dar mostras da superioridade da resolução socialista dos problemas concretos em questão. O chefe político social-democrata precisaria saber “aproveitar o mais pequeno pormenor para expor perante todos as suas convicções socialistas e as suas reivindicações democráticas, para explicar a todos e a cada um o alcance histórico-mundial da luta emancipadora do proletariado”27.

Para levar à frente tal tarefa, os socialistas deveriam “ir a todas as classes”28. Apenas com destacamentos em todas as partes, o movimento social-democrata seria capaz de organizar o descontentamento geral em um programa político claro. A preocupação aqui apresentada é a de transformar o proletário, base necessária da Social-Democracia, em classe de vanguarda frente ao movimento político geral. Significa dizer que os revolucionários deveriam conhecer as demandas concretas de cada estrato populacional e, concomitantemente, serem capazes de formular, a partir da perspectiva do proletariado, a resolução destas questões. Esta “ida a todas as classes”, portanto, não representaria de forma alguma uma diluição do caráter de classe da Social-Democracia, pelo contrário, seria justamente assim que ele estaria resguardado29.

Com este itinerário, o autor buscava a elevação da consciência política do proletariado à de classe dirigente da transformação estratégico-global. Somente através deste exercício indispensável poderia a Social-Democracia representar, de fato, uma vanguarda política digna de ser seguida por elementos de outros estratos sociais. Julgava, portanto, que


consciência das massas operárias não pode ser uma verdadeira consciência de classe se os operários não aprenderem, com base em factos e acontecimentos políticos concretos e, além disso, necessariamente de actualidade, a observar cada uma das outras classes sociais em todas as manifestações de sua vida intelectual, moral e política; se não aprenderem a aplicar na prática a análise materialista e a apreciação materialista de todos os aspectos da actividade e da vida de todas as classes, camadas e grupos da população”30.


A organização revolucionária

Os debates levados a frente por Lênin vão desaguar em sua formulação acerca do modo de organização de um partido revolucionário. A questão que parece mais premente em ser percebida é de que as propostas que o autor faz ao movimento social-democrata dizem respeito, em sua maior parte, ao contexto político russo. Além disto, não é demais afirmar que o trabalho que empreende aqui é o de concretização em termos organizativos das formulações que apresenta durante todo o livro.

Ainda que Lênin sempre tenha, como pano de fundo, a conjuntura política russa, o que demonstra sua preocupação com a bem contextualização de proposta organizativa, não a encarando como universal, Atilio Boron, lembra que diversos autores identificam as teses lançadas no Que Fazer? à elaboração das 21 condições às quais os partidos comunistas tinha de se adequar para fazer parte da III Internacional31. Dentre elas, a exigência de partidos centralizados de caráter conspiratório figura entre as suas principais. Este tem sido, inclusive, ainda a principal forma de organização dos partidos que, nos mais diversos contextos, reivindicam a concepção leninista de organização, decalcando os moldes apresentados pelo revolucionário.

Aqui, pretendemos uma apresentação do que nos pareceram os aspectos mais marcantes desta questão durante a leitura do Que Fazer?. Trata-se, portanto, de demonstrar porque a defesa de Lênin de determinado formato organizativo para os revolucionários.

Em um primeiro momento, cabe lembrar que o objetivo leniniano é “elevar a atividade das massas operárias” até o nível da luta de classes, no sentido acima indicado de luta pela revolução política. Para tanto, a primeira identificação que faz o dirigente social-democrata é de que é necessária uma organização de revolucionários capaz de atuar em toda a Rússia. Isto o coloca em contraposição ao que denominou de “trabalho artesanal” largamente aplicado durante os primeiros anos da Social-Democracia naquele país32. Em geral, representava operações que não resultavam “de um plano sistemático, bem meditado e minuciosamente preparado, de uma luta prolongada e tenaz” sendo, simplesmente o crescimento espontâneo do trabalho iniciado ainda embrionariamente por militantes sem experiência política. O desfecho frequente destas posturas era a prisão dos militantes que as punham em prática.

A ideia da discussão leniniana, da qual é possível a percepção a partir de uma leitura sistemática de seu texto, é a de que o caráter do programa político aplicado pelo movimento irá, por sua vez, determinar o próprio caráter que deve possuir a organização revolucionária necessária para aplicá-lo, ou seja, pô-lo em prática através da militância concreta. O “economismo”, tendência social-democrata combatida por Lênin, como visto, tem, como seu decorrente evidente, no que diz respeito ao reflexo organizativo de suas opções políticas, o “trabalho artesanal” supracitado.


Para a 'luta econômica contra os patrões e o governo' é absolutamente desnecessária uma organização centralizada para toda a Rússia (que, por isso mesmo, não pode formar-se no decorrer de tal luta), uma organização que reúna num único impulso comum todas as manifestações de oposição política, de protesto e de indignação, uma organização formada por revolucionários profissionais e dirigida por verdadeiros chefes políticos de todo o povo”33.


Desta reflexão pode-se extrair a seguinte decorrência: é da tarefa eleita pela organização que brotará, por decorrência, as formas organizativas necessárias e possíveis para o seu cumprimento. Quando Lênin afirma que a luta econômica não pode formar uma organização revolucionária para toda a Rússia, o faz por entender que, em verdade, este processo espontâneo de embates dos operários com os patrões e governo não tona perceptível esta necessidade. Não o torna pelo próprio caráter particular que cada luta de cunho econômico específico deve possuir, já que se tratam de necessidades concretas do cotidiano de trabalhadores em determinada fábrica, ou determinado ramo de trabalho.

Para a luta pela desestabilização do regime, no entanto, as necessidades organizativas elevam-se a um grau indiscutivelmente superior. Para tanto, Lênin coloca a preocupação de que na Rússia, a forma exigida pelo clima político da época era a de uma organização de caráter eminentemente conspiratório. Neste ponto, ele a diferencia completamente da organização de operários para a luta sindical. A organização da qual fala o autor é a organização de revolucionários:


a organização de um partido social-democrata deve ser, inevitavelmente, de um gênero diferente da organização dos operários para a luta econômica. A organização de operários deve ser, em primeiro lugar, sindical; em segundo lugar, deve ser o mais ampla possível; em terceiro lugar, deve ser o menos clandestina possível. (…) Pelo contrário, a organização dos revolucionários deve englobar, antes de tudo e sobretudo, pessoas cuja profissão seja a actividade revolucionária (por isso falo de uma organização de revolucionários, pensando nos revolucionários sociais-democratas). Perante esta característica geral dos membros de uma tal organização, deve desaparecer por completo toda a distinção entre operários e intelectuais, para não falar já da distinção entre as diferentes profissões de uns e outros. Necessariamente, esta organização não deve ser muito extensa, e é preciso que seja o mais clandestina possível”34.


Lênin faz, nesta mesma página, a fundamental ressalva que já apontávamos de que o que propunha para organização revolucionária russa dizia respeito, apenas, às necessidades organizativas do movimento revolucionário russo. Aqui é inevitável notar que a escolha do método organizativo a ser seguido pelos socialistas, segundo o que aponta uma interpretação para além do meramente expresso no Que Fazer?, deve responder a, pelo menos, duas questões fundamentais: primeiro, como já visto, as necessidades postas pelo programa definido, no caso o programa revolucionário; segundo, as necessidades colocadas pela conjuntura política em que se deve atuar. Significa dizer, a forma da organização não está pronta para nenhuma situação. Isto não inviabiliza a possibilidade de ser buscada, para cada situação específica, a ferramente revolucionária à altura de atuar na mesma. A idéia que se coloca é que, guardados os devidos graus mais ou menos variáveis das capacidades organizativas do movimento socialista em cada momento e localidade, há sempre espaço suficiente para que respostas deste tipo sejam oferecidas e, dentro dos limites históricos postos, para o seu sucesso possível.

Na concepção leniniana, no caso da Rússia autocrática, seria necessária uma organização de revolucionários profissionais. Daí a inexistência de diferenças, no partido revolucionário, entre operários e intelectuais. Dentro do partido todos devem estar devotados à causa da revolução, inclusive com possibilidade de assalariamento pela execução de suas tarefas pertinentes a isto.

Concomitantemente, e ao contrário da organização sindical, o partido revolucionário russo deveria possuir um caráter conspiratório (e, no caso específico da Rússia, clandestino). Isto, evidentemente, acarretaria a redução do número de seus componentes e, de uma maneira geral restringia a participação em seu interior. De um lado, nos parece que este é um correlato direto da preocupação leniniana já exposta em garantir que apenas os elementos revolucionários componham a organização que possui o objetivo de construir a revolução política. Por outro lado, é uma exigência do contexto russo, no qual uma organização aberta às massa não é realmente acessível aos trabalhadores, “na realidade, é aos gendarmes que esta organização será mais acessível e porá os revolucionários mais ao alcance da Polícia”35.

Isto não nega a necessidade que o partido revolucionário teria em dialogar com a massa operária. Na verdade, esta necessidade continua constante. No entanto, a rigorosa seleção de seus membros deve também servir para, aqui no campo concreto-organizativo, garantir a ortodoxia do programa, impedindo o rebaixamento em direção à burguesia. Para Lênin, o diálogo com as camadas operárias deve acontecer no sentido da construção de explicações acerca do socialismo com real acessibilidade ao nível cultural popular. Isto não é, de maneira alguma, ser permissivo com qualquer rebaixamento programático ao “nível das massas” sob a desculpa de que elas não aceitariam a proposta socialista. Quanto a isto o revolucionário russo é categórico: “nossa atenção deve voltar-se principalmente para elevar os operários ao nível dos revolucionários e não para descermos nós próprios infalivelmente ao nível da 'massa operária', como querem os 'economistas', e infalivelmente ao níveo do 'operário médio', como quer o Svoboda (que, neste aspecto, passa ao segundo grau da 'pedagogia' economista)”36.

Este caráter conspiratório da proposta leniniana para os revolucionários russos leva-nos a uma problematização sobre um dos aspectos que erege uma polêmica de tão ampla magnitude, que esta pode igualar-se apenas ao peso que este possuiu na história do movimento socialista mundial dos tempos do próprio Lênin até o período atual. Trata-se da questão do Centralismo Democrático. Não é demais lembrar que este texto não é o local no qual gostaríamos de fazer uma reflexão mais profunda acerca da questão, algo com o qual qualquer estudioso da história da esquerda terá, cedo ou tarde, de debater-se.

Lênin não utiliza propriamente esta expressão ainda neste texto. Sua preocupação aqui é com as restrições democráticas que um partido de caráter conspiratório necessariamente imporia aos sociais-democratas. Após comentar com certa exaltação a forma aberta, permitidaa pelo regime político da Alemanha, do Partido Social-Democrata Alemão, ele afirma:


Mas tentai encaixar este quadro na moldura de nossa autocracia! Será por acaso concebível entre nós que 'todo aquele que aceita os princípios do programa do partido e ajuda o partido na medida das suas forças' controle todos os passos dados pelos revolucionários clandestinos? Que todos elejam uma ou outra pessoa entre estes últimos, quando, no interesse de seu trabalho, o revolucionário é obrigado a ocultar a sua verdadeira personalidade a nove décimos destes 'todos'? (…) uma 'ampla democracia' de uma organização de partido, nas trevas da autocracia, quando são os gendarmes quem selecciona, não é mais do que um brinquedo inútil e prejudicial37.


Esta reflexão leva a um último ponto que gostaríamos de levantar para encaminhar a conclusão do presente trabalho. Lênin acaba, desta forma, por depositar uma confiança formidável na direção revolucionária do partido Social-Democrata. Para o autor de Que Fazer?, a direção que não realmente atenda às demandas da luta revolucionária acabará, por conseguinte, não sendo seguida nos passos fundamentais da mesma. A preocupação com a necessidade de eleição ampla desta direção, apresentada como crítica a Lênin neste período, é tratada por ele da seguinte forma:


Cândida, simplesmente porque ninguém obedecerá a um 'areópago' ou a pessoas de tendências antidemocráticas, sempre que 'os camaradas que os rodeiam não tenham uma confiança na sua inteligência, na sua energia e na sua lealdade'. Indecente, como saída demagógica em que se especula com a vaidade de uns, com a ignorância de outros sobre o verdadeiro estado do nosso movimento e com a falta de preparação e o desconhecimento da história do movimento revolucionário de ainda outros. O único princípio de organização sério a que se devem subordinar os dirigentes do nosso movimento deve ser: o mais severo secretismo, a mais severa selecção dos filiados, e a preparação de revolucionários profissionais. Estando reunidas estas qualidades, estará assegurada uma coisa mais importante do que 'democracia', a saber: a plena e fraternal confiança mútua entre os revolucionários”38


Conclusões Provisórias

Como dito no início, o objetivo deste curto trabalho não era o da exploração de todos os pontos da presente obra de Lênin. Isto requisitaria uma dedicação muito maior do que a que foi aqui expedida. Apenas para exemplificar, não discutimos aqui a importância dada pelo político russo para a construção de um órgão jornalístico para todo o país que serviria, ao mesmo tempo, como espaço de debate teórico e de organização centralizada das informações e posturas políticas do partido. Questões como esta terão de ser deixadas para outros momentos.

Por ora, é imperioso resgatar o que julgamos ser a ideia central do texo leniniano: a luta pela construção e manutenção da autonomia política do proletariado. Para o revolucionário, este ponto é de fundamental importância para a atuação do movimento socialista. Sua preocupação o desdobra em diversos campos: o político-organizativo, não permitindo que elementos não-revolucionários componham o partido; político-tático, determinando em que circunstâncias podem os socialistas atuarem com outros campos políticos; teórico, evitando o ecletismo e, com isto, a possibilidade de recuos ideológicos à burguesia; programático, evitando os rebaixamentos de qualquer natureza na perspectiva do partido.

Isto, como demonstrado, não deve fechar a preocupação do movimento socialista apenas sobre a classe operária. Muito pelo contrário, fazer isto seria efetivar uma verdadeira rendição ao caráter espontâneo da luta econômica ligada à vida nas fábricas. Para além desta perspectiva, Lênin propõe que a Social-Democracia seja capaz de discutir todos os problemas presentes na vida social, que seja capaz de formular soluções para todas as demonstrações de descontentamento com a qual se depare. Estas soluções, no entanto, devem ser apresentadas a partir da perspectiva do proletariado, o que pode transformá-lo na vanguarda política pela superação da ordem.

A escolha programática é, então, a da superação radical do regime político, e não a transformação dele em uma dominação mais confortável. O objetivo dos socialistas deve ser o fim do sistema que força os não proprietários estarem subordinados aos proprietários. Isto põe na ordem do dia o debate acerca do tipo de organização necessária para a atuação de acordo com as exigências deste programa.

Lênin propõe, para a Rússia, uma organização de tipo conspiratório e centralizada. Este é, talvez, o caráter de maior peso em sua obra. Aqui não é utilizado o termo Centralismo Democrático. No presente texto, ele apenas propõe restrições democráticas devido ao contexto russo na época em que é escrita a obra. No entanto, há que se refletir acerca do fato de que tais propostas de leninianas ainda compõem o rol de uma grande parte de estatutos de partidos de esquerda nos dias atuais. Esta é uma questão a ser analisada com bastante profundidade. É quase mística a confiança que o autor exige na direção. As evidências de que o direcionamento do partido para rumos não revolucionários, especialmente sobre o período estaliniano, são de tal tamanho que dispensam enumeração. E mesmo sem inteligência, energia revolucionária, ou mesmo boas perspectivas teóricas, uma determinada direção conseguiu se manter a frente do movimento socialista durante longos anos e com base, justamente, em tais restrições democráticas exigidas por tal método. O resultado, no fim, foi justamente o inverso do que queria Lênin: o movimento operário teve, durante largos momentos, sua autonomia prejudicada e colocada a mercê dos interesses políticos particulares da camarilha do partido.

Ainda assim, e talvez por isto mesmo, o Que Fazer? seja uma obra de fundamental importância para a esquerda. Como dito, ela guarda sua atualidade por tocar nos pontos que continuam profundamente na agenda de discussões daqueles que buscam a construção do movimento socialista mundial. As fronteiras teórico-programáticas de uma organização, seus métodos e suas táticas políticas, a relação entre partido e movimento de massas etc. Todas estas questões são discutidas na pequena brochura apresentada por Lênin. E, mesmo estando em grande parte voltadas para oferecer respostas à realidade russa do início do séc. XX, a forma como o autor as trata parece denotar traços de universalidades das quais o movimento revolucionário não pode se desviar sob pena de não poder ser chamado, realmente, de revolucionário.


Referências Bibliográficas

BORON, Atilio A. Extracto do estudo preliminar “Actualidade do Que Fazer?” para a edição de “Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento” de Lenine, publicada pela Ediciones Luxembur. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2004.


LÊNIN, V. I. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. 2ª Ed. Lisboa: Edições Avante!, 1978.


LUKÁCS, Georg. Estetica. La peculiaridad de lo estético. v. I. Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966.


MÉSZÁROS, István. Consciência de Classe Necessária e Consciência de Classe Contingente. In MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008.

1BORON, Atilio A. Extracto do estudo preliminar “Actualidade do Que Fazer?” para a edição de “Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento” de Lenine, publicada pela Ediciones Luxembur. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2004.

2LÊNIN, V. I. Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento. 2ª Ed. Lisboa: Edições Avante!, 1978. p. 10.

3LÊNIN, V. I. op. cit. pp. 13-4.

4LÊNIN, V. I. op. cit. p. 16.

5LÊNIN, V. I. op. cit. pp. 16-7.

6LÊNIN, V. I. op. cit. p. 24.

7Idem, ibdem.

8LÊNIN, V. I. op. cit. p. 25.

9LÊNIN, V. I. op. cit. p. 31.

10Idem, ibdem.

11Idem, ibdem.

12LÊNIN, V. I. op. cit. p. 33.

13LÊNIN, V. I. op. cit. p. 66.

14LÊNIN, V. I. op. cit. p. 38.

15“formulavam-se reivindicações precisas, calcula-se antecipadamente o momento mais favorável, discutem-se casos e exemplos de outras localidades, etc (…) as greves representavam já embriões – mas nada mais do que embriões – da luta de classes. Em si mesmas, estas greves eram luta trade-unionista, não eram ainda luta social-democrata”. LÊNIN, V. I. op. cit. p. 38-9.

16LÊNIN, V. I. op. cit. p. 39.

17Sobre esta questão ver o interessante ensaio Consciência de Classe Necessária e Consciência de Classe Contingente, de MÉSZÁROS, István. In MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008.

18“Isto não significa, naturalmente, que os operários não participem nessa elaboração. Mas não participam como operários, participam como teóricos do socialismo, como os Proudhon e os Weitling; noutros termos, só participam no momento e na medida que consigam dominar, em maior ou menor grau, a ciência da sua época e fazê-la progredir” LÊNIN, V. I. op. cit. p. 48.

19LUKÁCS, Georg. Estetica. La peculiaridad de lo estético. v. I. Barcelona: Ediciones Grijalbo, 1966. pp. 76-7.

20LÊNIN, V. I. op. cit. p. 47.

21LÊNIN, V. I. op. cit. p. 109.

22LÊNIN, V. I. op. cit. p. 49.

23LÊNIN, V. I. op. cit. p. 85.

24LÊNIN, V. I. op. cit. p. 74.

25LÊNIN, V. I. op. cit. p. 81.

26LÊNIN, V. I. op. cit. p. 90.

27LÊNIN, V. I. op. cit. p. 93.

28LÊNIN, V. I. op. cit. p. 92.

29LÊNIN, V. I. op. cit. p. 103.

30LÊNIN, V. I. op. cit. pp. 81-2.

31BORON, Atilio A. Extracto do estudo preliminar “Actualidade do Que Fazer?” para a edição de “Que Fazer? Problemas candentes do nosso movimento” de Lenine, publicada pela Ediciones Luxembur. Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2004.

32LÊNIN, V. I. op. cit. pp. 114-5.

33LÊNIN, V. I. op. cit. p. 113.

34LÊNIN, V. I. op. cit. p. 126.

35LÊNIN, V. I. op. cit. p. 134.

36LÊNIN, V. I. op. cit. p. 146.

37LÊNIN, V. I. op. cit. p. 154.

38LÊNIN, V. I. op. cit. p. 156.

1 comentários:

Carlos disse...

Maravilhosa resenha! Meus parabéns!!