Cem anos do Dia Internacional da Mulher

domingo, 21 de março de 2010

Cem anos do Dia Internacional da Mulher

É comum o mês de março ser tido como o “mês da mulher”. Há pontos interessantes e pontos negativos nisto. O que achamos interessante é que, quando chegamos no mês de março, de fato, acabamos nos sentido compelidos a refletir sobre o contexto atual no qual as mulheres se inserem socialmente. Acabamos sendo compelidos a perceber as desigualdades às quais são submetidas e, ao mesmo tempo, a necessidade de formulação de uma proposta superadora para as mesmas. Isto acontece com todos, daqueles mais progressistas, aos mais reacionários. Não é a toa que os dois textos sobre a situação da mulher deste blog estão postados no mês de março, por exemplo. Fica aqui a auto-crítica.

Concomitantemente, o mês de março, após 100 anos de comemorações, tem ganhado um certo automatismo, por assim dizer. Fora o fato de que as reflexões que foram apontadas acima ficarem restritas ao mês (“afinal de contas, o resto do ano não é das mulheres, bolas”!), o que por si só é algo extremamente negativo, o próprio 8 de março ganhou um contorno comemorativo, ao invés de representar um dia de denúncia do “déficit de socialização” ao qual são submetidas bilhões de mulheres ao longo do mundo.

Com efeito, é comum que no dia 8 de março, especificamente, se parabenize às mulheres pelo fato de serem mulheres. Bem, não é contra o fato de ser mulher que apontamos aqui o verdadeiro ridículo que é este ato. Ser mulher ou não é apenas uma decorrência natural. As pessoas nascem homens ou mulheres. O ato parece tão cômico quanto parabenizar alguém por ter cabelos loiros, pele branca etc. Ora, qual é o êxito disto? Em termos gerais, nenhum. A pessoa nasceu deste jeito. Não se congratula cachorros por serem cachorros, e nunca vimos alguém chegar em uma planta e parabenizá-la por ser verde. Mas, por que isto acontece entre os seres humanos?

Talvez, de uma maneira geral, a resposta a esta pergunta vá além da reflexão que fazemos neste texto. Mas é bastante evidente que a razão para que esta cena não aparente ridícula aos olhos de quem nela atua encontra raízes no processo histórico-social humano. Da mesma maneira que os brancos costumam ser congratulados a maior parte do tempo (seja de maneira escancarada, seja por outros artifícios como, por exemplo, capas de revistas sobre beleza) no dia 8 de março, as mulheres costumam ser bombardeadas com diversos presentes curiosos. Se não, vejamos: roupas, chocolates, cartões, sapatos, bolsas e flores. Muitas flores. Rosas de preferência. Até a Assembléia Legislativa de Alagoas lançou uma nota em jornal local em congratulação às mulheres decorado por uma pá de rosas (e alguns erros de português).

Bem, fizemos uma lista rápida de presentes que já vimos mulheres ganhar (entre eles, aliás, alguns foram dados por nós). Em geral, parece-nos que há escolhas óbvias a serem dadas para as mulheres, ainda que não percebamos que elas são assim tão óbvias. Mas, por exemplo, é extremamente incomum uma mulher ganhar, no dia internacional da mulher, uma agenda e uma caneta. Objetos absolutamente banais, mas que não costumam figurar na maior parte das escolhas de presentes para tal data. A coisa é diferente no dia dos pais. Afinal de contas, pais são homens! E trabalham! Precisam de uma agenda para seus compromissos para além da vida doméstica e, não poderia ser mais racional, de uma caneta para escrever nesta agenda. Para o dia internacional das mulheres, escolheremos, no máximo, um diário, onde nossa adorada garota poderá contar todas as suas aventuras em seu dia-a-dia íntimo.

A própria escolha automática que costuma ser feita para os presentes acaba visando a reforçar o caráter feminino das mulheres. Explicamos. Ser mulher, no sentido de constituir parte da humanidade que possui o sexo feminino é algo absolutamente natural. As pessoas nascem mulheres ou não, neste caso. Porém, ser mulher no sentido de fazer parte de uma particularidade de gênero é absolutamente diferente. Nada na composição natural das mulheres impele elas a gostarem mais de diários do que de agendas. Mas a constituição do gênero social mulher sim. Neste sentido, o reforço do caráter de feminilidade, para a sociedade que vivemos, é sinônimo do reforço do caráter de submissão no qual as mulheres se encontram.

A história é que pode demonstra isto da melhor maneira. Buscar um pouco sobre as raízes históricas do Dia Internacional da Mulher é, então, uma boa forma de procurar algumas das repostas que estas questões levantam.

Identificamos, pelo menos, três posturas frente ao 8 de março.

Uma primeira, não reflete de maneira nenhuma sobre a historicidade do dia, apenas comportando-se como de costume nesta data. É como se fosse muito claro: dia 8 de Março é o dia das mulheres, encomenda-se as rosas, parabeniza-se e pronto. O mercado dá vivas a isto. Afinal de contas, ninguém (nem mesmo as mulheres) ganha mais com este tipo de postura do que as estatísticas de compra e venda. O dia das mulheres é reduzido a mais uma data de consumo no calendário econômico. Costumeiramente, nem sequer se pensa nos problemas enfrentados pelas mulheres, que são felicitadas por serem mulheres. Esta é a forma mais dócil à qual o dia 8 de Março foi submetido. De uma maneira geral, já o descrevemos linhas acima.

Há, porém, uma segunda maneira. Nesta, resgata-se um pouco da historicidade do dia das mulheres o que apresenta uma maior complexificação em relação à primeira postura. É comum, inclusive, aprendermos a encarar o dia 8 de Março desta maneira na própria escola. Contam nossas “tias” que o Dia Internacional da Mulher foi escolhido por representar uma data em que operárias de uma fábrica têxtil estadunidense foram queimadas vivas por seus patrões.

O que acontece é que se conta um fato verdadeiro, mas descontextualizado. De fato, o incêndio é uma realidade histórica e tudo indica que foi ocasionado pelos donos da fábrica. No entanto, a explicação costuma ser passada para as crianças sem qualquer consideração acerca do motivo da violência causada pelos empresários. Quando muito, revela-se que se deu no contexto de uma greve. Nada se explica às crianças, por exemplo, porque os trabalhadores do século XIX e início do século XX faziam greves. Menos ainda é dito sobre as conquistas que tal instrumento trouxe ao longo da história. Uma explicação tão elaborada, aliás, teria de contar com comentários “bastante anti-pedagógicos” sobre uma coisa “terrível” chamada luta de classes.

O que acontece então? O Dia Internacional das Mulheres é explicado de uma maneira que satisfaz um determinado resgate histórico sobre o mesmo. Perguntas que vão um pouco além ficam sem respostas ou com respostas pela metade. Se algum aluno tiver a interessante percepção de que as mulheres incendiadas não poderiam propôr que se comemorasse sua greve, e que os patrões prefeririam esquecer o evento do que comemorá-lo todos os anos, e, por isto, perguntar à “tia” quem propôs que a data fosse comemorada ela provavelmente não responderia. Poderia, com muito esforço, dar uma resposta equivocada. A ONU costuma aparecer bastante nessas respostas. Mas ela só existe a partir de 1948. Não somos muito bons em matemática. Mas se o Dia Internacional da Mulher tiver 100 anos, não pode ter sido a ONU a primeira a propôr a data.

De qualquer maneira, a maioria das pessoas não apresenta este tipo de curiosidade. A história do 8 de Março fica, assim, nebulosa, mal explicada, frouxa. As origens do dia, em verdade, ficam completamente perdidas. No fim das contas, isto serve para a mesma docilização da primeira postura. Aliás, esta é, na verdade, a abertura das portas para ela.

Por um lado, lembra-se da luta por igualdade, por cidadania. Por outro, não se faz qualquer reflexão do que representa esta luta. Em geral, a questão da mulher é tida como uma questão, tão somente, de gênero. Esquece-se convenientemente que as vítimas do incêndio da fábrica têxtil eram, além de mulheres, operárias. Ou seja, esquece-se neste caso, da origem de classe que o próprio mundo burguês dá ao Dia Internacional da Mulher. A luta por igualdade, portanto, torna-se amorfa, sem definições, e perde-se no campo da política. Neste sentido, parece não interessar de que setor social venha a mulher, pois suas dificuldades seriam sempre as mesmas.

É evidente que não se pode desconsiderar as desigualdades sofridas em geral pelas mulheres. Mas o que queremos apontar aqui é que, ao esquecer o corte de classe que evidentemente está na origem do Dia Internacional da Mulher esquece-se que sua luta pela igualdade não pode ser plenamente vitoriosa dentro de uma sociedade que se sustenta sobre a desigualdade. E, no caso da sociedade capitalista, sua força motora é a desigualdade de classes. Não a toa, as mulheres estarão entre as mais exploradas no mundo do trabalho seja com menores salários, com jornadas duplas, com postos mais precarizados etc.

A perda de vista deste corte abre as portas para o automatismo que apontamos. A perspectiva da construção de uma sociedade efetivamente igualitária é deixada de lado pela luta por uma igualdade gradual. Pior. Pela crença de que essa igualdade gradual existe e pode ser alcançada, quando, no limite, a sociedade atual é marcada pela desigualdade. Desiste-se de superá-la e esforça-se por adequar-se a ela, mas da maneira mais confortável possível. Infelizmente, em séculos de capitalismo, o que melhor se demonstra é que essa igualdade plena não chegou, e nada indica que chegará. E mesmo os mais significativos avanços de direitos das mulheres (voto, direitos trabalhistas específicos etc.) dão a elas, apenas, o direito de serem tão (na verdade, sabemos que mais) exploradas pelo capital quanto seus companheiros homens. Os direitos das mulheres ganham um status civilizatório, mas só se a civilização for esta na qual já vivemos. No fim, melhor dar uma rosa para ver se elas não pensam muito sobre o assunto.

Mas acontece que as mulheres (assim como a maioria dos outros seres humanos) pensam. E se, num momento de exercício desta perigosa atividade resolverem ir além do automatismo do 8 de Março, podem acabar percebendo esta origem classista do seu dia. E aí vemos surgir uma terceira postura. Esta busca uma explicação mais completa acerca da origem do Dia Internacional da Mulher.

Bem, a controvérsia criada sobre a questão é grande. A maioria delas com as quais pudemos ter contato, no entanto, apontam para uma explicação que, em suas linhas gerais, é a seguinte:

Em primeiro lugar, em 1909 o Partido Socialista da América (EUA) teria organizado uma manifestação para relembrar as greves das operárias do setor têxtil e batizado-a de Dia Internacional das Mulheres, segundo o calendário gregoriano este dia foi o de 28 de fevereiro.

Em 1910 (daí os 100 anos), a comunista alemã Clara Zetkin, propôs em uma conferência internacional de mulheres organizada pela Internacional Socialista (a II Internacional) que se organizassem manifestações unificadas em todos países no Dia Internacional da Mulher. No entanto, Zetkin não propôs nenhuma data e a cada ano as manifestações aconteciam em datas diferentes a serem escolhidas especificamente. Neste ano, inclusive, o dia foi comemorado em 19 de Março. A greve das operárias novaiorquinas que termina com um incêndio é um fato histórico real. Mas ela sequer teria acontecido em 8 de Março. Na verdade, o registro do incêndio é do dia 25 de fevereiro de 1911.

De onde teria vindo o 8 de Março então? A resposta mais convincente parece ser a seguinte. No ano de 1917 a data escolhida pela Internacional foi a do dia 8 de Março. Seguindo esta determinação, mulheres russas organizaram manifestações com eixo principalmente contra a fome. A manifestação das mulheres acabou sendo o estopim da Revolução de Fevereiro na Rússia.

Revolução de Fevereiro? Em 8 de Março? Bem. À época do czarismo, a Rússia ainda utilizava o calendário juliano. Este é contado com 13 dias de atraso em relação ao calendário ocidental gregoriano. A Revolução de Fevereiro tem seu início no dia 23 de fevereiro na Rússia, que no ocidente era o dia 8 de Março. A partir daí o dia fica marcado como o Dia Internacional das Mulheres.

A origem do dia de luta das mulheres de todo mundo, então, até mesmo pela versão mais dócil é classista. É um dia em homenagem às mulheres trabalhadoras que lutam por uma vida melhor. Na versão mais próxima do real, ele é ainda mais. É classista, socialista e revolucionária. O resgate desta reflexão deve nos fazer pensar na data, não como um dia comemorativo, em que devemos parabenizar às mulheres. Mas como um dia em que devemos colocar ainda mais gás da chama que nos impele para a construção de uma sociedade justa e igualitária. Uma sociedade socialista.

Não é apenas isto. Mas este importante resgate demonstra, inclusive, que a preocupação com a inclusão democrática das mulheres (assim como de diversos outros setores) esteve sempre na mão dos socialistas. E, ao contrário do que o discurso liberal (inclusive nas academias) gosta de proferir aos quatro ventos, a preocupação com as questões democráticas esteve mais na mão dos marxistas e anarquistas do que das elites intelectuais. A constituição revolucionária russa, em vigor após 1917, esteve entre as primeiras a garantir direito ao voto às mulheres. Não apenas isto, garantiu inúmeros direitos trabalhistas que seriam incorporados depois à legislação do ocidente em constituições como a do México (1917) e a da República de Weimar (1919).

Mas seria contraditório esperar que uma sociedade que se sustenta na desigualdade comemorasse um dia de luta pela igualdade. Não por uma igualdade de olhos vendados para a injustiça. Mas por uma igualdade efetiva que só pode ser conquistada com a destruição das bases sociais vigentes. A única coisa que a atual sociedade poderia fazer é distorcer e confundir as origens do Dia das Mulheres. Aproveitando a oportunidade, concomitantemente transformam-no em uma data meramente comemorativa, de mercado e, quando muito, lembram vagamente que uns pequenos ajustes devem ser feitos em algumas leis e tudo estará resolvido.

Os reacionários deveriam buscar outra data para comemorar, mas é melhor dar rosas para não perder o pasto. Ironicamente a rosa, hoje maior símbolo do Dia Internacional das Mulheres dócil, já foi o símbolo do movimento socialista. Por conta do contexto em que se inseriu a II Internacional (de uma maneira geral, uma adequação à ordem, tal qual o Dia das Mulheres, com suas especificidades próprias) a rosa, seu brasão, acabou sendo substituída pela foice e o martelo, que simbolizariam a classe trabalhadora e camponesa em sua luta emancipatória.

Sem deixar de lado as foices e os martelos, a tarefa dos socialistas hoje é muito clara.

É hora de recuperarmos nossas rosas.


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