O canto das sereias e o capitalismo

sábado, 8 de agosto de 2009


Trecho de ensaio de Adorno e Horkheimer (Conceito de Iluminismo), publicado em sua A Dialética do Esclarecimento. Na passagem utilizam-se da obra homérica para explicar de forma alegórica a dominação da razão instrumental sobre a sociedade humana. Interessante o significado conferido ao canto das sereias. Enfim, vai logo abaixo. Em breve devo estar postando as primeiras páginas do TCC que tratam justamente desta questão.

Num relato homérico é preservado o entrelaçamento entre mito, dominação e trabalho. O décimo-segundo canto da Odisséia narra a passagem diante de sereias. O chamariz era a tentação de perder-se no passado. Mas o herói que é submetido à tentação chegou à maioridade no sofrimento. Na variedade dos perigos mortais, nos quais ele se devia manter firme, a unidade de sua própria vida, a identidade de pessoa endureceu-se. Como água, terra e ar separam-se para ele os reinos do tempo. Para ele, a maré do que era refluiu da roca do presente e o futuro nublado carrega o horizonte. O que Ulisses deixou atrás de si entrou no mundo das sombras; o si-mesmo está ainda tão perto do mito do ante-tempo, de cujo seio se separou penosamente, que seu próprio passado vivido se converte para ele no ante-tempo mítico. Pela ordem firme do tempo ele procura um paliativo para isso. O esquema tripartido deve libertar o momento presente do poder do passado, expulsando este último para trás do limite absoluto do irrestituível e pondo-o à disposição do agora a título de saber praticável. O afã de salvar o passado enquanto vivo, em vez de usá-lo como material do progresso, só é apaziguado na arte, à qual a própria história pertence enquanto exposição da vida passada. Enquanto renuncia a valer como conhecimento, fechando-se assim para a práxis, a arte é tolerada, assim como o prazer, perla práxis social. Mas o canto das sereias ainda não foi privado da sua força, ainda não foi reduzido a arte. Elas sabem de "tudo quanto se passa na terra fecunda", sobretudo aquilo que o próprio Ulisses participou, "tudo quanto os argivos e troianos sofreram na arrasada Tróia pela vontade dos deuses".

Evocando diretamente o passado mais recente, elas ameaçam, com a irresistível promessa de prazer percebida no seu canto, a ordem patriarcal que só devolve a vida de cada um contra sua plena medida de tempo. Quem vai atrás das artimanhas das sereias cai na perdição, desde que só a permanente presença de espírito arranca a existência da natureza. Se as sereias sabem de tudo o que se passou, elas exigem o futuro como preço disso e a promissão do feliz retorno é o engano pelo qual o passado captura o saudoso. Ulisses foi prevenido por Circe, divindade que transforma os homens em animais; ele lhe soube resistir e, em compensação, ela lhe deu a força de resistir a outros poderes de dissolução. Mas a sedução das sereias é assim mesmo forte demais. Ninguém que ouça o seu canto pode escapar-lhe. A humanidade teve que infligir-se terríveis violências até ser produzido o si-mesmo, o caráter do homem idêntico, viril, dirigido para fins, e algo disso se repete ainda em cada infância. O esforço para manter firme o eu pretende-se ao eu em todos os seus estágios e a tentação de perdê-lo sempre veio de par com a cega decisão de conservá-lo. A embriaguez narcótica que faz expiar, com um sono semelhante à morte, a euforia que suspende o si-mesmo, é uma das mais antigas instituições sociais que fazem a mediação entre autoconservação e auto-aniquilamento, uma tentativa do si-mesmo de sobreviver a si próprio. A angústia de perder o si-mesmo e de suprimir com ele a fronteira entre si próprio e a outra vida, o pavor perante morte e destruição, irmana-se com uma promessa de felicidade que ameaçava a civilização a cada momento. Seu caminho era o da obediência e do trabalho, sobre o qual a satisfação reluzia permanentemente como mera aparência, como beleza esvaziada de força. Inimigo tanto da própria morte como da própria felicidade, o pensamento de Ulisses sabe disso. Ele conhece apenas duas saídas possíveis. Uma ele prescreve a seus companheiros. Ele lhes tapa as orelhas com cera e manda-os remar com todas as forças que têm. Quem quiser subsistir não deverá dar ouvidos à tentação do irrestituível e isso só poderá ser evitado caso não lhe for possível escutá-la. Disso a sociedade sempre cuidou. Viçosos e concentrados, os trabalhadores devem olhar para frente deixar de lado o que estiver de lado. Eles devem sublimar o impulso que os pressiona ao desvio, aferrando-se ao esforço suplementar. Assim eles se tornam práticos. - A outra saída é a que é escolhida pelo próprio Ulisses, o senhor de terras, que faz os outros trabalharem para si. Ele escuta, porém privado de forças, atado ao mastro e, quanto maior se torna a tentação, mais fortemente ele se faz acorrentar, da mesma maneira que, em épocas posteriores, os burgueses recusarão a felicidade para si mesmos, com tanto maior obstinação quanto mais a tenham ao seu alcance, com o crescimento do seu poder. O escutado não tem consequências para ele, que pode apenas acenar com a cabeça para que o soltem porém tarde demais: os companheiros, que não podem escutar sabem apenas do perigo do canto, não da sua beleza, e deixam-no atado ao mastro para salvar a ele a si próprios. Eles reproduzem a vida do opressor ao mesmo tempo que a sua própria vida e ele não pode mais fugir a seu papel social. Os vínculos pelos quais ele é irrevogavelmente acorrentado à práxis ao mesmo tempo guardam as sereias à distância da práxis: sua tentação é neutralizada em puro objeto de contemplação, em arte. O acorrentado assiste a um concerto escutando imóvel, como fará depois o público de um concerto, e seu grito apaixonado pela libertação perde-se num aplauso. Assim o prazer artístico e o trabalho manual se separam na despedida do ante-mundo. A epopéia já contém a teoria correta. Os bens culturais estão em exata correlação com o trabalho comandado e os dois se fundamentam na inelutável coação à dominação social sobre a natureza.


3 comentários:

Emmanuel disse...

Gostei!

Marquinhus Vinicius disse...

Muito bem escrito, major! :D

Diria, ainda, que fiquei surpreso com a ligação feita entre Do The Evolution e a teoria frankfurtiana. Concordei em grandes partes!

Tenho que criar, de verdade, o hábito de visitar mais o seu blog: há muita coisa boa a ler e a refletir sobre.

Até mais, seu safado! Beijos!

(Marquinhus)

Eli Magalhães disse...

Ah, bandido... nem tinha visto seu comentário aqui, patrão.

Volte sempre.

Abração, camarada.