Entre os conceitos criados a partir destas reflexões o de Direito Alternativo é o mais caro, e, talvez, o que mais precise ser dilapidado atualmente. Em linhas gerais, o Direito Alternativo encontrou, em seu desenvolvimento duas subdivisões: o Direito Alternativo, propriamente dito, e o Uso Alternativo do Direito.
Pude participar do I Encontro Nacional da Rede Popular de Estudantes de Direito (REPED) e ver o quanto esta oposição precisa ser melhor explorada pelo MED e por aqueles que buscam a construção de uma Ciência do Direito e de uma Educação Jurídica que avance no combate às contradições sociais. O debate do Direito Alternativo propriamente dito é, visivelmente, mais hegemônico entre os juristas de esquerda.
Tentando delinear de maneira geral este conceito, o Direito Alternativo propriamente dito busca conferir legitimidade ao que seriam
manifestações jurídicas para além do Estado. Esta seria uma forma de combater o positivismo no direito, que reconhece enquanto legítimas apenas as normas postas pela entidade estatal, o que, em última instância seria uma maneira de dominação por parte da classe dominante, já que é a ela que serve o Estado. A partir daí, porcurar-se-ia a legitimidade do direito construído em diversas esferas ou, como diria uma expressão muito utilizada nestes meios, do
direito achado nas ruas que pode chegar aonde o direito estatal não chega e, até mesmo, contradizê-lo.
Por via diversa, o Uso Alternativo do Direito consubstancia-se no conhecido
Positivismo de Combate. É, na verdade, uma postura do profissional do direito que procura explorar as contradições do sistema jurídico afim de defender os interesses sociais das classes subalternas e oprimidas. Uma maneira de fazer a máquina do judiciário rodar suas engrenagens em um sentido que lhe seria estranho: a defesa dos trabalhadores. O Uso Alternativo do Direito não se preocupa em provar a legitimidade de relações que se demonstrem enquanto jurídicas mas que tenham sido postas por fora das regras impostas pelo Estado.
As diferenças são sutis, mas esta sutileza não justifica o entendimento, equivocado do meu ponto de vista, que as duas atitudes se complementam, ou de que são parte de uma mesma coisa. Este entendimento serve para confundir ainda mais as coisas, fazendo com que, novamente, o Direito Alternativo ganhe um
status que não tem. Em verdade, aqueles que seguem o Direito Alternativo podem, tranquilamente, valerem-se, em sua prática diária, do Uso Alternativo do Direito, mas o contrário não é possível. O Positivismo de Combate não está preocupado em discutir quais as esferas legítimas de produção jurídica. Sua preocupação é a de utilizar as próprias rachaduras do monumento normativo contra a opressão que ele é capaz de infligir.
Por isso, a exploração da dicotomia entre ambas as posturas necessita de maior dedicação. Este texto não pretende esgotar o assunto, muito pelo contrário, é mais um registro de impressões gerais acerca do tema.
Em minha opinião, a confusão reside em uma distinção anterior a esta que precisa ser desvelada. A expressão Direito Positivo tem, hodiernamente, abarcado diversos significados diferentes. O primeiro dentre eles é o de Direito Estatal posto pelos homens segundo as normas de construção jurídica. Seria direito aquilo que esteja juridicizado pelos procedimentos estatais e pronunciado pelo Estado enquanto direito. Este conceito (aqui colocado de maneira extremamente débil) tenta resumir o direito ao que é juridicamente valorado pelo Estado, de acordo com os processos que o próprio Estado criou e que também são jurídicos. Na verdade, quando utiliza-se este conceito faz-se uma oposição direta ao conceito de Direito Natural.
O Direito Natural é uma corrente de pensamento que permeou o conhecimento jurídico durante séculos. Da Antiguidade Clássica ao início da Modernidade ele foi hegemônico nas reflexões filosóficas acerca do fenômeno normativo. Em essência, a teoria do Direito Natural coloca a figura jurídica como existente independente da atividade humana. Aos homens, caberia apenas interpretar a realidade e descobrir o que seria justo a partir da natureza das coisas. A longo dos períodos históricos o Direito encontrava sua origem na Natureza, em Deus, na Razão humana (que era o médium pelo qual os homens interpretavam o justo) etc. Desta forma, a humanidade não era a construtora da justiça, esta já estava posta na natureza, cabia, apenas, desvelá-la. Desnecessário dizer o quanto isto serviu às classes dominantes que, a partir daí, legitimavam sua posição no jogo produtivo das sociedades das quais participavam. O Direito Positivo surge, então, no momento posterior às revoluções burguesas európeias quando a humanidade passa a perceber-se enquanto sujeita de sua história.
Diferente do Direito Positivo no sentido acima descrito, é a Ciência Positivista do Direito Positivo. Apesar da aparente redundância este conceito, também comumente incluído no de Direito Positivo, não é sinônimo daquele. É possível perceber uma clara distinção entre objeto de estudo e método de estudo nesta relação. Se o conceito de que tratam os últimos parágrafos descreve apenas o objeto da Ciência do Direito, o segundo recai, basicamente, sobre o método que esta ciência deve utilizar para o estudo deste objeto. O positivismo científico passa a ser o método de estudo do Direito Positivo. O que significa dizer, passa a ser estudado, o direito posto pelo Estado, de uma maneira coerente com o método de aferição de conhecimento positivista.
Isto significa a construção de um conhecimento que toma enquanto estanque o objeto de estudo. O Direito passa a ser estudado separadamente da Sociologia, da História, da Filosofia, da Psicologia etc. Passa a produzir um ramo autônomo e suficiente de conhecimento. Além disto, o positivismo tráz com ele diversos outros aspectos como, por exemplo, o recuo do cientista frente ao objeto, a neutralidade ideológica etc.
O conhecimento de uma realidade histórica produzido de forma a deslocar seu objeto de suas relações com a totalidade do mundo humano é, claramente, fetichizado. O método positivista serviu, nas diversas esferas em que atuou , da Sociologia ao Direito, para esconder a realidade, enternizar a sua atual conformação (aquela que se traduz na sociabilidade burguesa) e, até mesmo, constituir uma legitimidade científica que lhe foi atribuída falsamente graças à sua pretensa neutralidade. Desta maneira, parece-me, é ao método positivista que devem dirigir-se as críticas de um movimento científico formado por juristas progressistas.
A corrente do Direito Alternativo leva, em última instância, a conclusões muito próximas da Ciência Positivista do Direito Positivo. Apenas como exemplo, é possível citar a eternização da forma jurídica. Tanto os positivistas quanto os
alternativistas acreditam que o Direito sempre existirá enquanto existir sociedade humana. A diferença é que os primeiros ligam esta conclusão à de que sempre existirá Estado, enquanto os segundos trazem a reflexão de que o Estado não é necessário para o Direito, e, por isto, este é quem sempre existiu.
Ainda que por via diversa ambos parecem perder a reflexão fundamental a ser feita. Aquela que inclina-se sobre a origem da forma jurídica que só se constitui, em especificidade, com o advento do capitalismo. Quanto a isto, a tese de Pashukanis em "Teoria Geral do Direito e Marxismo" é de fundamental importância. Encontrando na circulação mercantil a necessidade da figura normativa o jurista soviético rechaça, de maneira magistral, qualquer possibilidade de um "Direito Proletário". Com o fim do sistema produtor de mercadorias, deixaria também de existir a própria necessidade que dá bases ao Direito: a de garantia de segurança para a exploração dos negócios. Não é a toa que o livro de Pashukanis foi proibido na União Soviética que, apesar de declarar-se comunista, ainda possuía um imenso arcabouço jurídico-burocrático a sustentar a exploração à qual estavam submetidos os trabalhadores em seu território. No entanto, a História do Direito parece vir a confirmar esta tese. Curiosamente os dois períodos humanos em que o Direito mais se desenvolveu, de forma específica, foram permeados por uma forte atividade mercantil. O mais evidente deles é o próprio Capitalismo. O segundo é a Sociedade Romana, que tinha no comércio um posto avançado de acumulação de riquezas. É evidente que isto não iguala os dois períodos históricos, posto que, na Roma Antiga, o escravismo era ainda a forma predominante de acumulação.
Por estas razões acredito que aqueles que intentem pensar o direito sob um viés realmente transformador precisam voltar suas críticas ao positivismo enquanto método. Desta maneira, poder-se-á abrir caminho para o cultivo de um segundo método de estudo da realidade humana: a dialética. Ou, mais especificamente, o
materialismo histórico-dialético. Um método que tem como preocupação básica a construção de um conhecimento que explore o objeto a ser estudado a partir de suas articulações com o todo, e não como se esta fora fechado eternamente em sua própria lógica. Esta me parece ser a questão fundamental a ser enfrentada pela Filosofia do Direito de esquerda atualmente. Enquanto isto, na luta cotidiana contra as opressões do capital, o Uso Alternativo do Direito, o Positivismo do Combate, parece ser a melhor arma à mão dos juristas que se põe ao lado das lutas dos trabalhadores e dos oprimidos. Isto se dá porque, ao reconhecer o papel que os próprios homens têm na construção do ordenamento jurídico, o Direito Positivo dá um passo fundamental na superação do obscurecimento da realidade trazida pelo Direito Natural.
