Independência ou morte!

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Independência ou morte!


O 07 de Setembro, data em que comemoramos o dia da Independência parece ser propício para uma reflexão importante. Temos tanto a comemorar? É fato óbvio e ululante que não somos mais uma colônia portuguesa, mas isso por si só é suficiente para configurar nosso país como soberano?

A discussão aqui, contudo, não se resume à questão brasileira. Nem, tampouco, se aprofunda nela. Mas o dia da Independência é um bom gancho para a apresentação do novo documentário de Oliver Stone: Ao Sul da Fronteira. Ambientado na América Latina, tem como foco central os recentes governantes chegados à presidência de diversos países ao longo da última década e a relação dos mesmos com a mídia norte-americana. O epicentro do documentário é Hugo Chávez.

Stone inicia com uma série de notícias, claramente falaciosas e, em alguns casos, inclusive, ridículas, acerca dos novos presidentes da América Latina, tidos como não alinhados à política de Estado dos Estados Unidos. As notícias são retiradas de emissoras de grande repercussão até mesmo mundialmente falando. São extratos de áudio e vídeo retirados de transmissões da FOX, da BBC, CNN etc. O espectador é brindado, inclusive, com uma cena em que Michael Moore discute com um apresentador de TV acuado acerca da situação geopolítica internacional.

Este é talvez o lado mais interessante do documentário. A crítica direta que o filme faz à forma de “gerenciamento da verdade”, por assim dizer, dos grandes meios de comunicação dão uma base sólida para a avaliação do poder que estes instrumentos privados de hegemonia, no dizer de Gramsci, possuem. Há, por trás das transmissões, uma clara construção do consenso em torno de interesses bem definidos. Com uma remontagem de imagens, inclusive, Stone demonstra como a mídia norte-americana trabalha na produção de escandalosas mentiras no sentido de legitimar a versão governamental.

Trata-se da era Bush (mas não se pode esquecer que o mesmo acontece em diversos outros momentos). O presidente norte-americano define Chávez como o representante de um novo “Eixo do Mal”, ao qual ele também associa o Afeganistão e o Iraque. Não por acaso três países produtores de petróleo. Na legitimação automática que a imprensa norte-americana dá ao discurso de seu presidente percebe-se que vale-tudo. Stone revela como há, inclusive, uma cínica montagem de imagens gravadas durante o golpe sofrido pelo presidente da Venezuela em 2002.

No dia do referido golpe, uma multidão de pessoas foi às ruas em apoio a Chávez. Atiradores de elite escondidos em apartamentos próximos passaram a disparar nos partidários do presidente. Segundo Oliver Stone, os manifestantes contra Chávez também teriam sido atingidos. Em outro documentário, A Revolução Não Será Televisionada, no entanto, a informação é de que apenas os chavistas teriam sido alvo. Independente disto, os chavistas passam a se esconder em cima de uma ponte e a fazer disparos em uma rua vazia abaixo dela. A TV norte-americana, apresenta as imagens destes disparos combinadas com as imagens dos próprios chavistas atingidos pelos atiradores de elite, tentando ligar as duas, colocando eles próprios como os responsáveis pelos assassinatos. É uma clara manipulação.

Stone, portanto, performa uma interessante crítica ao monopólio dos meios de comunicação. Mas parece que o faz sem ter certeza do que está fazendo. Parece que não o faz de maneira absolutamente consequente. Ele leva todas as questões em torno de interesses de Estado. A impressão que fica é que aprofunda pouco em termos de interesses de classe. Isto não significa que ele deixe de pontuar os interesses econômicos envolvendo as mistificações da mídia norte-americana, nem mesmo dos ganhos materiais que os governos latino-americanos representaram para as parcelas mais pobres de sua população. No entanto, por trás destes interesses, Stone coloca, sempre, os líderes de Estado. Esquece de ver o conflito como uma luta entre os que lucram com estes interesses e aqueles que são explorados. No fim, tudo parece ser uma questão de mudança de caráter dos governantes.

Esta é a chave que utilizará, inclusive, para a sua análise da geo-política latino-americana. O centro do documentário é Chávez e a Venezuela. A eles é dedicada a maior parte do tempo. No entanto, são seguidos por Morales e Bolívia, Argentina e os Kirchner, Brasil com Lula etc. Aparecem até mesmo Lugo e Correa. Próximo ao final do documentário, inclusive, temos uma participação modesta de Raul Castro.

Sob a ótica de Stone, as diferenças entre todos estes governantes são reduzidas. O telespectador ficar com a idéia de que todos estes governos fazem parte de um mesmo processo, com iguais características e diferenças pontuais. O que é certo por um lado, equivocado por outro. De fato, a ascensão de governos de cunho popularesco, como os de Lula e Chávez, faz parte de um mesmo contexto histórico de esgotamento político, digamos assim, das antigas oligarquias de seus respectivos países, combinado a uma aversão ao neoliberalismo por parte de suas populações. A questão do neoliberalismo, contudo, é demonstrada mais claramente em Ao Sul da Fronteira, quando se trata da Argentina e da Bolívia (com os resultados da privatização da água).

Contudo, a força de mobilização das massas faz com que cada um destes governantes tenha características diferentes, de maneira diversa do que aparece no filme. As conquistas materiais dos venezuelanos sob Chávez estão, de longe, em uma ótica diferente daquelas mesmas que são construídas no Brasil de Lula.

Mas há um ponto em comum, entre todos estes presidentes, que Oliver Stone, em sua simpatia pelos processos de mobilização latino-americanos, deixa de apontar. Todos eles, a suas particulares maneiras, acabam por refrear as massas em seus processos de conquistas. Por mais importantes que estejam sendo as experiências venezuelana e boliviana, por exemplo, é inegável que Chávez e Morales, representam, por uma via indireta, a melhor maneira de impedir a organização para conquistas maiores. No que diz respeito a Chávez, por exemplo, é necessário ressaltar que seu governo tem avançado em algumas questões, como performando estatizações (com indenizações, aliás), mas recuado em outras, como repressão de greves etc. O ato mais característico de Chávez foi o seu apelo para que as massas voltassem para casa após elas terem impedido que ele sofresse um golpe de Estado em 2002. Ao invés de valer-se da correlação de forças absolutamente favorável aos movimentos populares, naquele momento, Chávez prefere recuar para a institucionalidade. No fim, faz concessões às velhas oligarquias e à manutenção da propriedade privada.

Pela alta mobilização dos trabalhadores venezuelanos, contudo, Chávez é obrigado a pintar seu governo de cores revolucionárias e é levado a mais embates com o imperialismo. Isto explica sua demonização pelas mídias dos mais diversos países, inclusive da Venezuela. Com Lula, no entanto, a coisa é diferente. Oliver Stone apresenta como o presidente brasileiro foi visto como uma “centro-esquerda tolerável” por parte do Departamento de Estado, e da mídia, norte-americanos. Há uma contradição. Se tanto Chávez quanto Lula representam o mesmo projeto de independência e combate à desigualdade na América Latina, porque apenas Chávez é tido como endiabrado? Stone não é capaz de responde esta questão. A resposta tem a ver com o fato de que, no Brasil, o processo que concede a presidência ao PT não é acompanhado de fortes mobilizações populares tal qual na Venezuela. Os petistas chegam à presidência seguindo os exatos mesmos métodos que seus adversários da direita tradicional. São apoiados, no máximo, por uma aversão a esta. Seu governo, contudo, apesar de programas assistencialistas de combate à pobreza, continua mantendo um sistema de indiscutível desigualdade no país. O salário mínimo dos brasileiros cresceu 57%, enquanto os lucros das grandes empresas cresceu 392%. Por isto, a mídia dos Estados Unidos simpatiza com Lula.

A perspectiva apresentada por Oliver Stone não é capaz de captar esta questão chave. Não se trata de um ou outro governante, mas do projeto classista que ele representa. E, apesar de ser claro que há um processo de mobilizações populares na América Latina que têm resultado em um deslocamento, ora aparente, ora real, para a esquerda de seus governos; é também claro que há ainda muito por acontecer para que estas experiências construam, de fato, alternativas reais ao sistema ao qual dizem se contrapor.

Uma frase de Oliver Stone durante uma das cenas do documentário serve para resumir a sua idéia geral sobre o decorrer de fatos no continente. Já no final do filme ele diz que vivemos em um “capitalismo selvagem” que deve ser combatido. E lança desavidamente: “Eu acredito em um capitalismo benigno”. Isto explica o tom de esperança com o qual é retratada a eleição de Barack Obama nas últimas cenas. Stone deixa se impressionar facilmente. O futuro dirá se a experiência com seu presidente democrata, que não cumpriu suas promessas de finalizar a guerra e desocupar o Oriente Médio, atacou o sistema de saúde etc., será eficiente em mudar sua opinião e entender que o capitalismo é incontrolável. Logo, é impossível ele ser benígno. Isto não retira, contudo, o mérito que ele tem em ser um documentarista norte-americano preocupado com o tema que tratamos no início do texto: preocupado com a real independência, liberdade e igualdade para os povos da América Latina. Mas ele, como muitos de nós, precisaremos aprender que esta independência tem menos a ver com a dominação da metrópole sobre as colônias do que com a dominação do homem pelo homem. Ela precisa ser conquistada, portanto, tanto na América Latina, quanto no resto dos continentes.

2 comentários:

Eli Magalhães disse...

@antoniouga Alertou um erro no texto. Afeganistão não produz petróleo, é, na verdade, um território estratégico no Oriente Médio.

Valeu, Ugá... Abração!

Eli.

Marquinhus Vinicius disse...

Tenho o documentário baixado, mas ainda não assisti, Eli. Ficou bacana pra chuchu o texto!

Embora você não se aprofunde nos pontos que levanta (e acredito que não seja a intenção, pois trata-se de uma leitura de blog), penso que salientou muito bem questões que podem ficar escondidas a um "olhar desatento".