Avatar: um grito contra o capitalismo, pero no mucho

domingo, 4 de abril de 2010

Avatar: um grito contra o capitalismo, pero no mucho.


Avatar, o mais falado blockbuster dos últimos tempos é um filme que incitou mais discussões do que eu esperava. Após ver a verdadeira epifania de críticas por um filme tão plástico é difícil não se perguntar se ele não teria algo a dizer de fato. As críticas ao Avatar, no entanto, raras vezes conseguem chegar à discussão profunda acerca do filme, de suas perspectivas e do contexto no qual se insere esta obra de James Cameron.


A película se tornou tão famosa que uma descrição pormenorizada de seu enredo é dispensável. Um simples resumo é suficiente para dar bases a esta discussão. Em Avatar, uma empresa de mineração descobre um novo planeta, com propriedades naturais favoráveis à exploração mercadológica. O público é envolvido, desde o início, em um futuro, talvez não tão distante, de uma sociabilidade capitalista com tecnologia altamente avançada. Dentre os feitos deste avanço, está a possibilidade da geração de corpos geneticamente construídos para a sobrevivência em planetas sem condições ecológicas para a vida humana, mas com seres inteligentes.


É o caso do filme. O planeta descoberto, batizado de Pandora, possui alta reserva de um valioso minério, o qual a referida empresa poderia explorar com direitos de exclusividade. Para tanto, contudo, seria necessária uma verdadeira estratégia militar para que as forças ambientais do planeta em questão, bastante além das capacidades naturais de sobrevivência humana, fossem domadas a fim de possibilitar sua exploração econômica. Isto não é uma obstáculo para a corporação mineradora. Ela se utiliza de seu poder para a montagem de um verdadeiro exército privado com o objetivo de colonização de toda a área. Concomitantemente, põe sob suas rédeas um grupo de renomados cientistas com o intuito de produção de conhecimento acerca das propriedades naturais do local de mineração.


Estes cientistas são os responsáveis pela criação dos avatares. Réplicas perfeitas de corpos dos Na'vi, o povo nativo de Pandora. Sua estrutura genética é consideravelmente diferente da humana, o que se explicaria pelos caminhos diversos de sua evolução biológica no ecossistema de seu planeta natal. Contudo, com a ajuda da alta ciência os humanos conseguem desenvolver a técnica de transferir sua consciência para os corpos por eles produzidos, o que os permite interagir de maneiras muito mais complexas com o planeta hostil. Em seus avatares, os colonizadores são capazes de respirar, andar sem equipamentos etc., pelo ambiente em questão.


Assim, surgem três questões importantes a serem discutidas: a capacidade inovadora do filme; a relação de seu enredo com a realidade (o que levará à terceira questão); a sua perspectiva artística.


É indispensável pontuar: Avatar é um filme com uma fotografia espetacular. Aqui, a palavra espetacular não é apenas um elogio. Ela está ligada umbilicalmente com sua real origem, o espetáculo. O filme é extremamente plástico. A sensação do espectador é de que as imagens foram realmente gravadas em um outro planeta, onde vive um outro povo com uma cultura “estranha” à sua. Sem dúvidas, há uma demonstração impressionante de onde a técnica cinematográfica pode chegar e de quais as consequências que ela pode atingir em suas apresentações de perspectivas. Elogiar simplesmente a técnica, contudo, é fazer uma análise altamente formalista do filme.


Se a técnica cinematográfica é avançada, o enredo de Avatar impressiona em como é limitado. Em suma, tudo o que o espectador espera que vai acontecer durante o filme realmente acontece. Uma cadeia quase interminável de clichês que já foram apresentados em inúmeras peças de cinema que vieram antes. Apenas para citar o maior e principal de todos: o ex-fuzileiro naval que renega sua posição em sua cultura de origem para aliar-se à luta que considera justa de um povo “atrasado” em relação ao seu e, graças à sua “superioridade cultural” intrínseca, torna-se o líder “nato” do povo do qual vira protetor.


Em conversa com dois camaradas após assistirmos ao filme, percebemos que é exatamente a mesma história, por exemplo, de Tom Cruise em O Último Samurai (para citar um só exemplo). A única diferença está dos Na'vi para os japoneses. Só. Os norte-americanos renegados voltam-se contra sua cultura para, a partir dela, domar toda uma outra cultura complexa e milenar tornando-se não qualquer coisa, mas o maior expoente, líder e referência da resistência desta cultura contra seu inimigo externo de onde é originado. No caso d'O Último Samurai, pelo menos, a perspectiva real não é aviltada como em Avatar e os rebeldes são derrotados pela lógica da força militar de uma cultura mais voltada para o belicismo.


A questão central é a seguinte: Avatar não apresenta nada de novo esteticamente falando, fora a mais avançada tecnologia de produção cinematográfica. E, como é comum em filmes como os que apresentam esta perspectiva, a discussão de fundo até tem contornos críticos, mas não radicais.


Isto se demonstra na relação do enredo do filme com os nexos do real. A discussão que está por traz da história contada em Avatar (e, nas devidas proporções, em O Último Samurai também) possui um cunho weberiano da crítica à razão Iluminista. Esta luta entre razão e mundo é apontada há séculos, mas é n'A Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer que ela ganha um contorno sólido.


Acompanhando Max Weber, os autores percebem que o sonho emancipatório dos Iluministas dos séculos XVI a XIX, de levar a humanidade à liberdade através do conhecimento científico resultou em um avanço única e exclusivamente voltado para a dominação capitalista. A ciência é posta sob a batuta da economia. O desenvolvimento do conhecimento é reduzido à evolução da técnica de produção. A sociedade se molda ao cálculo racional, que permite a previsibilidade dos lucros e das perdas econômicas. A ciência, longe de livrar os seres humanos das sombras dos mitos medievais, por exemplo, leva-os à gaiola de aço do capitalismo, do qual não conseguem mais escapar. A razão é, assim, a verdadeira inimiga da emancipação.


Vejamos se não é esta a perspectiva apresentada em Avatar. Pouco esforço é necessário para demonstrar como, no filme, a ciência e a técnica estão completamente dominadas pela lógica racional da economia. A filiação (espontânea?) do enredo a esta questão se demonstra ainda mais facilmente na forma como os Na'vi se relacionam com seu planeta natal. Uma forma altamente mística, religiosa. A religião, a mitologia são, em suma, o contrário da razão. Seu antônimo natural. Religião e ciência são esferas antagônicas nesta perspectiva. Não bastasse, é exatamente a partir desta relação mítica com Pandora que os nativos conseguem vencer seus invasores.


A mensagem final para o público: uma apresentação negativa da racionalidade humana interligada a uma positividade extrema de sua capacidade de entendimento antropomorfizada da realidade em uma perspectiva falseadora do real. A razão é apresentada como a destruição da vida, e a sociedade capitalista é identificada à racionalidade. O misticismo e a relação romantizada com a natureza, sem a percepção de seus reais nexos são alavancados ao máximo, confundindo a real relação dos seres humanos com o mundo. Seu real intercâmbio, sua lógica verdadeira de funcionamento, reduzindo, por fim, todo o relação homem-natureza racional à destruição de ambos.


A perspectiva estética do filme, por fim, torna-se anticapitalista, sem dúvidas. Mas um anticapitalismo tímido, indefeso e romântico. No fim, um anticapitalismo inofensivo. Um desejo impulsivo do retorno à vida natural e abandono da complexidade das (hiper)modernas sociedades, com suas megalópoles conturbadas e relações mercantilizadas elevadas a um volume tão intenso que é capaz de deixar apenas a dúvida se ainda formam uma sociedade humana (aliás, note-se como o representante da empresa em Avatar é apresentado como altamente “desumano”, o que não é uma representação de todo mistificadora). Uma sociedade tão “desumana” que é capaz de, atualmente, pôr em risco a própria existência do planeta com a crise ambiental que ela produziu.


Mas qual alternativa esta perspectiva oferece? Visto que um retorno à vida primitiva da humanidade é impossível e, na maioria dos casos, até indesejável, a solução seria atacar aquilo que nos trouxe até aqui. Atacar a “racionalidade” altamente econômica do capitalismo. Reduzi-la, domá-la, dá-la uma cara mais humana. Em uma palavra: antropomorfizar o capital. Aqui as coisas se confundem. A capacidade humana de ver nas coisas características suas o que é, desde o início, um equívoco, é utilizada para justificar a possibilidade de continuar convivendo com o capitalismo, desde que ele reduza um pouco o seu lado “racional” para dar espaço à humanidade (não tão “racional”). Ou seja, uma perspectiva de reforma do capital, como se este pudesse ser controlado, como se sua lógica pudesse ser domada.


Não é a toa que o criador de Avatar, James Cameron tem como uma de suas maiores referências e amizades Al Gore, o ex-candidato democrata à presidência dos Estados Unidos, conhecidamente um defensor do desenvolvimento sustentável do capitalismo. No Brasil, Marina Silva do Partido Verde, que tem alardeado sua candidatura à presidência este ano sob um programa que “une o melhor do PT e do PSDB” a uma “perspectiva sustentável”, ou seja, uma política econômica neoliberal pintada de verde, declarou-se grande fã do filme. Não há nada de surpreendente aqui. É a mesma velha cantilena do Capital tentando demonstrar que é possível a convivência da humanidade com ele. Ao mesmo tempo, contudo, a realidade demonstra o contrário e o fracasso de Copenhagen, de Kyoto e de várias outras tentativas de solucionar os problemas ambientais através do diálogo e desta convivência com o Capital apenas comprovam isto.


A identificação do capitalismo à racionalidade é o erro de fundo. Na verdade, a irracionalidade está justamente na maneira como o Capital se reproduz atualmente. Opor a esta irracionalidade uma outra, com uma máscara mais humana, não é o que pode oferecer solução para os problemas enfrentados. Avatar se filia a esta perspectiva limitada e por isto não pode oferecer mais do que uma vitória romântica do misticismo sobre a “racionalidade” capitalista. Uma crítica ao capitalismo, pero no mucho.


A certeza que tenho é de que o filme poderia oferecer muito mais se apresentasse o conflito entre esta sociabilidade capitalista “racional” e a sua superação histórica real. Uma superação fundada não sobre o romantismo, mas sobre uma reflexão do real intercâmbio entre homens e natureza. Uma formulação que parte da apreensão científico-filosófica material da vida e, por isto, é capaz de propôr uma superação verdadeira para a atual organização da produção humana. Superação que não se confunde com uma humanização do Capital, mas com a sua imperativa destruição. Que se resume, então, na construção da real emancipação humana: a sociabilidade comunista.



3 comentários:

Marquinhus disse...

Puta que lo parió! Gostei muito do texto, Eli! Apesar de ter refletido sobre muita coisa que você colocou, enquanto assistia o filme, agrada-me bastante a maneira pela qual você se expressa, e o quão fundo você consegue chegar em suas análises, por mais curtas que pareçam.

Eli Magalhães disse...

Marquito! Assisti essa semana "O Segredo de seus Olhos". Argentino. Lembrei de você. Tem uma hora que o cara fala: "PUTA MADRE!" :)

Noemi Jorge disse...

Noemi disse..
Viajei no comentário sobre o filme a partir de suas colocações ele é tomado de um valor histórico abrangente