Da Crítica à Razão Instrumental até a Razão Comunicativa (parte 2)

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

    1. As aporias da razão e a ruptura de Habermas.

As conseqüências filosóficas dos postulados erigidos pelos frankfurtianos são de impacto profundo. Suas teses, levadas ao máximo de sua reflexão, darão lugar a uma crítica implacável sobre a modernidade e sua forma de conhecer o mundo. Essa, como se viu, é a mesma operação que dá bases ao agir voltado para a dominação, o agir instrumental. Se, por um lado, essa atitude, tipicamente Iluminista, trouxe um inegável avanço no campo das ciências e da técnica, por outro, no que diz respeito a seus objetivos originais de emancipação do gênero humano, ela vem a jogar um peso determinante na manutenção de diversas relações sociais que impedem essa potência utópica da razão de se manifestar.


As idéias desenvolvidas pelos filósofos marxistas de Frankfurt irão influenciar diversos nomes importantes da filosofia contemporânea. Esta influência no entanto, parece configurar-se em uma bifurcação que leva a duas maneiras distintas de encarar a crítica desenvolvida e, por conseguinte, a própria modernidade.


Por um lado, a crítica à razão desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Social dá bases ao desenvolvimento do chamado pós-estruturalismo1. Reunindo uma gama de autores que julgam encontrar nessa crítica uma chave analítica preciosa para o diagnóstico da realidade contemporânea, os pós-estruturalistas (ou pós-modernos), analogamente aos nomes do marxismo ocidental, não possuem, entre si, nexos rígidos de pensamento. Sua base comum, no entanto, está nas formulações de Frankfurt e de Nietzsche2.


Para nomes como Lyotard, Derrida, Deleuze, Foucault etc., a razão seria a base da modernidade, assim como de suas patologias. Seria indispensável, hoje, um esforço para o encontro com o outro da razão3. A pós-modernidade, assim, afasta-se do que chama de “as meta-narrativas” da modernidade4, e, com isso, da utopia da emancipação por via de um projeto racional, fundando uma crítica irracionalista à modernidade. Assim, Heiddeger, julga encontrar o outro da razão na figura do tempo, enquanto Foucault o identifica com um estudo genealógico sobre o corpo5.


Habermas representa, nesse contexto, a alternativa diversa da bifurcação aberta por Adorno e Horkheimer. Ele fará um grande esforço em identificar os limites da formulação de seus mestres, ao mesmo tempo em que objetiva manter-se fiel ao projeto da modernidade e, com isso, do Iluminismo.


Para ele, Adorno e Horkheimer, em sua melhor produção, cometeram uma aporia fundamental, que, por sua vez, dará as bases para o pensamento pós-estruturalista. Se a tarefa de esclarecer o próprio esclarecimento sobre si mesmo, no sentido que é construído pelos frankfurtianos de primeira geração, é levada às últimas conseqüências, outra não poderia ser a conclusão de que a razão, esse centro da atividade do homem, que dirigiria a humanidade à emancipação, na verdade, é produtora de novos mitos, e com isso, de uma cada vez maior reificação das relações humanas.


Por outro lado, quem, se não a própria razão poderia ter produzido essa ferrenha crítica sobre si mesma? É frente a esse problema racional básico que Habermas inicia seu esforço intelectual. Sua conclusão primordial é a de que, no momento em que nega a potencialidade emancipatória da razão, a Escola de Frankfurt está, concomitantemente, retirando de seu próprio pensamento as bases normativas que dão sustentação a ele. Se a razão não pode ser fonte de um agir voltado para a emancipação, como parece demonstrar seu desenvolvimento histórico identificado em A Dialética do Esclarecimento, como fundamentar essa mesma crítica, que é realizada a partir de um itinerário marcadamente racional6?


Habermas identifica aspectos em que Adorno aproxima-se demasiadamente da forma nietzscheniana de encarar o problema. Para ele, o autor da Dialética Negativa, vai encontrar em sua negação determinada7 a maneira de conviver com a crítica que dirige ao pensar da modernidade. Essa postura torna-se, para Habermas, análoga àquela utilizada por Nietzsche em sua teoria do poder: um escape a uma genealogia que acaba por, na busca das origens do poder, reconstruir o mito de sua criação8.


No entanto, em O Discurso Filosófico da Modernidade, Habermas indica que Adorno tinha consciência da aporia em que se encontrava9. O frankfurtiano de segunda geração descreve a situação em que seu mestre quedava:


Quem persiste em paradoxo, ali onde a filosofia se manteve ocupada com suas fundamentações últimas, não adota apenas uma posição incômoda; só pode manter sua posição se ao menos tornar plausível que não há nenhuma saída. A possibilidade de retirar-se de uma situação aporética tem de estar igualmente barrada, se não haveria um caminho, precisamente o de volta. Parece-me, no entanto, que este caminho existe.10


Esse caminho de volta que Habermas julga encontrar é, justamente, a teoria do agir comunicativo11. Assim, o filósofo pretende, a partir da descoberta aporética de seus mestres, postular que, ao invés de uma postura irracionalista, a saída para o paradoxo é, na verdade, um conceito amplo de racionalidade12. Essa postura, sem dúvidas, o coloca em flagrante contra-mão ao pensamento pós-estruturalista. De fato, a crítica de Habermas a estes pensadores é mordaz.


Para ele, as formulações que apresentam são típicas da postura daqueles que ele classifica enquanto jovens conservadores13. Não os encara como conservadores na mais clássica acepção do termo. Esta tipologia habermasiana, aliás, veio a causar uma ruidosa comoção entre os pensadores franceses, abalados com a alcunha, já que, em sua pátria, estiveram sempre ligados à chamada gauche philosophique14. Porém, assim os classifica por, apesar de identificar a postura de não aceitação às patologias da modernidade neles presentes, não consegue encontrar, nos mesmos, argumentos favoráveis ao engajamento político emancipatório15. Antes, os pós-modernos conformam-se em desistir da modernidade, que, para Habermas, configura-se enquanto um projeto inacabado.


Sua ruptura com a primeira geração da Escola de Frankfurt é configurada, portanto, em um processo de recepção crítica de suas formulações somado à decisão de dar continuidade à Teoria Crítica em outros moldes. O afastamento habermasiano se dará em sua formulação acerca da razão comunicativa. Com o seu caminho de volta Habermas procurará responder à três dificuldades que identifica na Teoria Crítica frankfurtiana:


As maiores deficiência que Habermas sentia em relação à teoria crítica diziam respeito à sua “fundamentação normativa”, seu “conceito de verdade e sua relação com as disciplinas científicas”, e “sua subestimação das tradições democráticas e constitucionais de um Estado legal”.16


O problema da “fundamentação normativa” é, justamente, o exposto acima. Em sua crítica da ideologia totalizante a Teoria Crítica acaba por atacar seus próprios fundamentos. Para Habermas, passa a ser uma exigência a mudança de paradigma utilizado pela filosofia. O conceito de razão utilizado pelos primeiros frankfurtianos, que seria arraigadamente baseado em uma filosofia da história, precisa ser superado. Para tal superação Habermas irá propôr, ao invés da crítica à razão tout court realizada pelos pós-modernos, uma mudança de paradigma, que deverá se constituir no abandono daquela que chama de filosofia da consciência, rumo à adesão à filosofia da linguagem.

1“Lyotard é um leitor minucioso de Adorno e assume decididamente suas idéias centrais: a concepção de incomensurável, do não-representável, da rejeição da comunicação como norma, do pensar em forma de paradoxos, da crítica da estética da inovação, do método micrológico. O próprio Habermas destaca 'a afinidade intelectual de Adorno com Derrida, por um lado, e com Foulcault, por outro lado'. Essa afinidade consiste no elemento subversivo-espirituoso de uma crítica da razão consciente de sua auto-referência paradoxal, assim como na aplicação dos potenciais de experiência da vanguarda estética a problemas da filosofia e da política”. REESE-SCHÄFFER, Walter. Compreender Habermas. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. p. 129.

2FREITAG, Barbara. op. cit. p. 116.

3“Mas os irmãos Böhme não querem exorcizar o diabo com a ajuda de Belzebu; pelo contrário, juntamente com Foucault, vêem na passagem de uma razão exclusiva (de cunho kantiano) para uma razão compreensiva a mera 'complementação do tipo de poder baseado na exclusão pelo tipo de poder fundado na penetração'. Para serem conseqüentes, sua própria investigação deveria ocupar, no outro da razão, um posto absolutamente heterogêneo à razão”. HABERMAS, Jürgen. O Discursos Filosófico da Modernidade. São Paulo: Martins-Fontes, 2000. pp. 421-422.

4SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 14-15.

5“Habermas interpreta o pós-estruturalismo do seguinte modo: a crítica à razão, que se configura nestes autores, nega a continuidade como discurso da modernidade, com a idéia de razão da modernidade: Heidegger escolhe o tempo como sendo o 'outro' da razão. E este 'outro' constitui um poder originário, anônimo, liquidificado em tempo. Ao passo que M. Foucault concentra-se na dimensão da certeza espacial na experiência do próprio corpo e concebe o 'outro' da razão como a fonte anônima de interações ligadas ao corpo”. Idem, ibdem. p. 35.

6“O procedimento ideológico-crítico de Marx, que descobre pretensões de repressão ocultas atrás de teorias, é totalizado na Dialektik der Aufklärung. O conjunto da razão do mundo burguês é colocado sob suspeita ideológica. Com isso é atingida a última revelação possível, pois aqui a razão precisa denunciar-se a si mesma. A perspectiva a partir da qual a crítica é exercida, não pode ser mais indicada seguramente; a crítica da razão executa rapidamente sua auto-suspensão”. REESE-SCHÄFFER, Walter. op. cit. pp. 130-131.

7Idem, ibdem. p. 131.

8“A Dialética Negativa, de Adorno, pode ser lida como a continuação da explicação de por que temos de girar em torno dessa contradição performativa, e devemos mesmo persistir nela, de por que somente o desdobramento insistente e incansável do paradoxo abre a perspectiva daquela “reminiscência da natureza do sujeito”, invocada quase de maneira mágica, “que encerra a verdade ignorada de toda a cultura” (…) Nietzsche coibiu essa estrutura paradoxal, explicando a assimilação da razão no poder, consumada na modernidade, com uma teoria do poder que se remitologiza voluntariamente e, em vez da pretensão de verdade, retém apenas a pretensão retórica do pensamento estético. Nietzche mostrou como a crítica se totaliza”. HABERMAS, Jürgen. op. cit. pp. 170-171.

9“Adorno estava perfeitamente consciente dessa contradição performativa da crítica totalizada”. Idem, ibdem. p. 170.

10Idem, ibdem. p. 183.

11 REESE-SCHÄFER, Walter. op. cit. p. 131

12SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 64.

13FREITAG, Barbara. Teoria crítica ontem e hoje. 5ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 117.

14 REESE-SCHÄFER, Walter. op. cit. p. 124-125.

15 Idem, ibdem. p. 128.

16ARAGÃO, Lucia. Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002. p. 45.

1 comentários:

Wibsson disse...

Tá legal pra caramba Eli, parabéns.