A Democracia de 2010

domingo, 14 de novembro de 2010

A DEMOCRACIA DE 2010


O Brasil passou por um momento importante no último fim de semana. Após uma jornada de meses, escolheu um novo nome para o cargo mais alto da república. Dilma Rousseff foi eleita a primeira mulher a comandar o executivo nacional.


O caráter dessa inovação no cenário político pode nos trazer a idéia de que vivemos um novo momento. Parece mesmo que o país consolida sua democracia. Saímos de um presidente metalúrgico, para uma mulher no poder. Parece que estamos em uma época inédita na história tupiniquim. Algo análogo ao presidente negro estadounidense. Será real esse avanço?


Gostaria apenas de apresentar comentários muito breves acerca de todo o processo. E, talvez como García Marques, contaria o final no início. Não mudou nada. Estamos vendo a “crônica de um governo anunciado”. Ele não me parece representar qualquer avanço democrático de fato. E não sou do time que acha que é melhor não avançar do que retroceder, como alguns petistas (e mesmo correntes políticas da esquerda da qual, acredito, esses últimos, em conjunto, não fazem parte).


Penso que a questão nodal foi a caracterização da democracia utilizada pelas candidaturas majoritárias durante toda a campanha. Em verdade, como se pode lembrar facilmente, todos esses candidatos defenderam a “democracia”. Pelo menos, em suas palavras. E, entre PSDB e PT (para restringir, aqui, ao segundo turno), não demonstraram quaisquer diferenças essenciais em suas formas de compreender esse tal conceito.


Não sou eleitor do PT e muito menos simpatizante. Mas é preciso admitir que, nesse ponto, a candidatura de Dilma contou com mais coerência. O PSDB, tendo perdido seu local de opção exclusiva da direita para os cargos do Executivo, regrediu a formas de discurso incrivelmente retrógradas para poder costurar uma possibilidade de disputa com os lulistas. Quando ambos os partidos são adeptos das privatizações, da assistência social focada no critério de vulnerabilidade e não universalizada, do predomínio da iniciativa privada sobre os serviços públicos etc., não há mesmo outro jeito de se diferenciar e disputar votos.


A epifania da disputa pelo cargo de “defensores da democracia” ocorreu após a declaração de Lula de que iria vencer o “partido da mídia”. PSDB-DEM fizeram o maior escarcéu contra o “ataque à liberdade de imprensa”. Eu peço perdão pelo termo escarcéu, mas é o mais respeitoso a ser utilizado para tal atitude. A vontade mesmo era de dizer: xilique. Em um simples piscar de olhos, o Lula virou algo tão grotesco quanto os censores do regime militar de décadas atrás. E o piscar de olhos também foi o tempo necessário para a direita tradicional esquecer completamente as declarações com teor muito similar de Serra sobre os “blogues sujos” que declaravam apoio ao partido do Governo. Da mesma forma, não foram poucos dentre seus apoiadores que mantiveram a mesma atitude de Lula frente a veículos como a Carta Capital, por exemplo. O presidenciável do PSDB não queria vencer eleitoralmente tais mídias?


Convenhamos, nisso é necessário ficar do lado do Lula. A idéia de que partidos precisam ter registro no Tribunal Eleitoral para assim serem denominados é bastante simplista. Os jornais interferem diretamente na formação de opinião pública e, consequentemente, nos atos de seus receptores. Eles tomam deliberadamente parte, escolhem um lado na disputa política, seja ela declarada ou não. O conceito aqui é amplo. Abarca, então, os instrumentos privados de hegemonia. Isso porque o critério para defini-lo é seu projeto de classe, e não as letrinhas que vêm depois do “P”.


E essa é a principal questão da disputa de 2010. Quais os projetos de classe em embate? E se por um lado ficamos com Lula na questão da imprensa, por outro, Serra se cobre de razão ao dizer o seguinte: o PT deu continuidade a FHC. A política neoliberal foi mantida impecavelmente, houve privatizações, ao contrário do que dizem os petistas, houve sucateamento do serviço público, ao contrário do que dizem os petistas, houve ataque ao funcionalismo, ao contrário do que dizem os petistas, houve uma política de juros estratosféricos e superávit primário, ao contrário, sempre, do que dizem os petistas. Há uma longa lista de caracteres que poderia ser utilizada. Não é o objetivo aqui.


A redução da eleição a um plebiscito não foi uma decisão unicamente do governo que está por acabar. Ela foi a decorrência lógica do processo de maturação da “democracia” que se estabeleceu no país. Aliás, entender 2010 como um grande plebiscito é até inflar o ego do pleito. A disputa não se colocava entre projetos antagônicos. Não era um “sim” ou um “não”. Era apenas um “esse ou aquele”. Duas partes da elite econômica disputando a melhor maneira de reproduzir o capital. Dois empregados brigando pelo cargo de gerência.


O que fica por trás de todo o discurso em defesa da democracia dos candidatos majoritários é o conteúdo que eles dão a esse conceito. Defendem, na verdade, uma “democracia” formalizada, autonomizada, que pode funcionar “muito bem obrigado”, sem o povo. E, a bem da verdade, contra o povo. O Estado Democrático e suas instituições se colocam enquanto uma forma alienada, separada, estranha, à intervenção popular. O voto se resume ao direito que as pessoas têm de escolheres entre os candidatos que atendem aos requisitos formais já pré-estabelecidos e pró-ordem.


Não é a toa que a candidatura de Plínio serviu apenas para fazer um pequeníssimo reboliço no pleito. Nada mais. Com acesso aos debates eleitorais, mas vetado da mídia, sem qualquer possibilidade de um financiamento sequer equiparado às candidaturas majoritária, com um tempo de programa eleitoral muito reduzido, não se podia fazer muito mais. E nem se fale, quanto a isso, das outras candidaturas de esquerda que sequer chegavam ao debate, em condições bem mais desvantajosas.


A construção de uma verdadeira democracia é concomitante à construção de uma outra sociedade. Ter o mercado como mediador primordial da vida humana é o que nos afasta de uma possibilidade real de autogestão. Lutar por democracia real, hoje, significa lutar pelo poder dos trabalhadores, aqueles quer realmente têm interesse em uma transformação radical da sociedade. Aqueles que, enfim, possuem interesse em tomar para si o poder político e destruir seus privilégios. Significa lutar pelo socialismo e contra a farsa da democracia burguesa.

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