O Convite para a Servidão: Hayek e a Troika
ELI MAGALHÃES
Alguns fatos recentes referentes ao continente europeu e ao desenvolvimento da crise econômica que o abate atualmente servem de portas para reflexões importantes acerca do regime democrático atual. Falamos aqui, particularmente, dos rumos políticos da Grécia e da Itália, onde os líderes governamentais (respectivamente Papandreou e Berlusconi) escolhidos nas últimas eleições foram substituídos devido aos planos internacionais da chamada “Troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional).
Com o agravamento da presente crise econômica, a estabilidade política europeia é claramente abalada. Mesmo antes das investidas populares do mundo árabe (Tunísia, Egito, Líbia, Síria etc.) a movimentação de trabalhadores, desempregados e jovens era forte na Grécia já entre 2009 e 2010, relocalizando, por exemplo, o KKE (Partido Comunista da Grécia) no espectro político nacional. No entanto, após os eventos do Norte da África, seguindo o exemplo das ocupações de praças, toda a Europa parecia entrar em fúria. Pensemos na Geração à Rasca portuguesa, ou nos indignados Espanhóis, as greves gerais gregas, os protestos contra Berlusconi na Itália (que misturaram repúdio aos escândalos sexuais e de corrupção nos quais o premiê esteve envolvido e a recusa dos planos econômicos da Troika), o levante da juventude da periferia britânica, além dos anteriores protestos de estudantes universitários que atearam fogo à sede do Partido Conservador, dentre outros. Ebulição que chega ao outro lado do Atlântico (movimento estudantil chileno, Ocupe Wall Street etc.) e retorna com ainda mais força.
A substituição dos líderes de governo da Grécia e da Itália, contudo, sinalizam para uma resposta ainda mais dura do capital contra todos esses movimentos. Trata-se da completa submissão desses povos aos interesses financeiros internacionais, retirando os dirigentes eleitos (por mais discordâncias que possamos nutrir aos mesmos) e colocando em seus lugares tecnocratas reconhecidos por seus serviços prestados ao sistema monetário. O objetivo central: aprofundar o corte de gastos estatais e garantir o pagamento das respectivas dívidas. Em termos simples, salvar os grandes financistas, os próprios responsáveis pela crise.
O caso de Papandreou, aqui, é ainda mais humilhante. Durante meses, seus dias foram marcados pelo dilema de como retomar a estabilidade política do país ao mesmo tempo em que mantinha a Grécia como membro da União Europeia. É dizer, como atender as demandas de aprofundamento das medidas de austeridade, nomeadamente o corte de direitos sociais, postas para tal continuidade na UE, e vencer a forte mobilização popular contra tais planos.
Encurralado, o governo decide pela convocação de um plebiscito geral acerca das medidas propostas pela Comissão Europeia para o país. O resultado que se desenhava da consulta era, como acontecera já na Islândia, visivelmente negativo para os planos da Troika e, portanto, dias antes da ida às urnas os gregos recebem a notícia de que ela seria cancelada. Ao cancelamento seguiu-se a demissão de Papandreou. O primeiro ministro foi substituído por Lucas Papademos, ex-vice presidente do Banco Central Europeu e ex-chefe do Banco da Grécia, que tratou de constituir um governo de tecnocratas mais duro e insensível às demandas sociais. Detalhe, o Sr. Papademos nunca recebeu nem um único voto do povo grego.
A crise grega, contudo, não seria tão preocupante para os interesses internacionais não fosse sua potencialidade em afetar a economia italiana. A decadência da Itália pode arrastar atrás dela todo o resto do continente. Entrando em situação de estagnação econômica com um crescimento de apenas 0,5% do PIB em 2011, com previsão de 0,1% para 2012, e uma dívida externa de aproximadamente 120% do que produz, o país é a mais franca preocupação da Comissão Europeia. É nesse sentido que Berlusconi renuncia por intervenção dos órgãos internacionais e é substituído por Mario Monti, comissário durante dez anos para assuntos de Mercado Interior da Comissão Europeia e assessor do banco Goldman Sachs. Monti, para chegar ao cargo de primeiro-ministro (e acumular também o de ministro da economia), foi nomeado às pressas como senador vitalício pelo presidente italiano Giorgio Napolitano. Somadas a tudo isso vêm as recentes manobras Sarkozy – Merkel no sentido de restringir ainda mais a participação no bloco econômico europeu, com a proposição de medidas tão inflexíveis que mesmo o Reino Unido recusou-se a aceitar.
Impossível, frente a todo esse itinerário, não nos recordarmos de Friedrich Hayek, um dos pais da ideologia neoliberal nascida nos meados da década de 1940, seguindo o pós-II Guerra Mundial. Em sua obra O caminho da servidão, o economista austríaco pretendia alardear os perigos das tendências “coletivistas” (se usarmos seu próprio vocabulário) presentes no pensamento europeu que impregnariam todas as correntes doutrinárias que não o próprio liberalismo. Para Hayek, do fascismo ao socialismo (aliás, o primeiro seria apenas uma “versão de direita” do segundo, pelo que o autor utiliza a palavra “socialismo” para designar ambos), passando pelas teses keynesianas, que são seu principal alvo no período em que escreve seu livro, a ideia de intervenção estatal na economia representam não mais do que a receita para a destruição das liberdades do indivíduo.
De forma que, restringir a liberdade de mercado por qualquer via, seja a supressão da propriedade privada dos meios de produção, ou o mais brando planejamento econômico estatal, incluindo aqui políticas de previdência social que se enfrentem, ainda que minimamente, com a livre concorrência, representariam todos passos inexoráveis em direção a regimes totalitários. Aqui, o totalitarismo deve ser entendido como a subsunção completa do indivíduo à “comunidade”. Como a perda do controle por parte do indivíduo frente a seus interesses através da imposição de forças autoritárias de outros homens sobre si, esses últimos em suposta representação da “sociedade”.
O resultado não pode ser outro, claro. Hayek defende que apenas com liberdade de mercado é possível a liberdade política e, portanto, somente uma sociedade baseada na livre iniciativa pode constituir-se como uma sociedade democrática. O ideal político neoliberal é apresentado escancaradamente: um Estado de Direito mínimo, baseado na igualdade formal. Isso representaria a “antítese do governo arbitrário”, já que todos os cidadãos deveriam ser tratados pelo Estado sem qualquer privilégio personalista. Indispensável ficar claro, ainda, que, se por um lado a receita para um governo democrático em que a liberdade individual é resguardada baseia-se fundamentalmente na igualdade formal perante a lei, por outro, qualquer tentativa política de transformar esta igualdade formal em uma igualdade substantiva significaria o fim deste Estado de Direito. Para alcançar a igualdade entre cidadãos diferenciados o Estado teria de tratá-los diferenciadamente, o que, evidentemente, é um contra senso com a ideia de mínima intervenção frente à uma estrita isonomia legal. Aqui estaria aberto o tal caminho para a servidão, a via para o surgimento de um regime totalitário.
Durante os trinta gloriosos anos da Europa pós-guerra, em que o Estado de Bem-Estar Social vigorou em alguns de seus poucos países (essa é toda a glória que o capital pôde oferecer à humanidade desde a derrocada do feudalismo), as ideias de Hayek permaneceram marginais. Assim também ocorreu com seu concílio neoliberal, corporificado na Sociedade de Mont Pèlerin (fundada em 1947), da qual participaram nomes como Ludwig Mises, Milton Friedman, Lionel Robbins e Karl Popper. Um espécie de partido intelectual contrário ao Estado de Bem-Estar e ao New Deal estadunidense, que havia eleito como sua tarefa propagandear os princípios liberais para toda a audiência que pudessem, especialmente intelectuais e lideranças políticas.
A coisa muda de figura com a crise da política anticíclica keynesiana, o fim do Welfare e a avassaladora crise econômica da década de 1970. A partir daí, lideranças políticas de matizes as mais conservadores passam a invocar os senhores de Mont Pèlerin para garantir a reconquista de altas taxas de lucro para a elite econômica. A famosa Margareth Tatcher, renomada não apenas por sua dureza na implementação fanática dos planos neoliberais na Inglaterra, mas também por sua política anti sindical audaz, por mais de uma ocasião prestou honras e fez uso de citações de Hayek. A saída do isolamento político é uma clara vantagem para todos aqueles que pretendem intervir na realidade. Ela, contudo, traz o ônus de impedir a continuidade de uma confortável posição abstrata em que se pode, por exemplo, defender a democracia ao mesmo tempo em que se propõe as políticas governamentais mais impopulares. Pois é a partir dos anos 1970 que se inicia uma ofensiva destrutiva aos direitos sociais, no intuito de fazer com que antigas áreas garantidas como direitos (previdência, saúde, educação etc.) passem a servir de novos nichos de valorização do capital. A liberdade de mercado não é aqui uma pretensão política em defesa da democracia, mas uma necessidade imperiosa para a própria continuidade da lógica do capital.
E é esta saída do ostracismo que nos apresenta o concílio neoliberal em pleno exercício de suas concepções “democráticas”. Milton Friedman, por exemplo, assume o posto de conselheiro econômico da ditadura sanguinária de Pinochet no Chile. Ora, parece mesmo uma boa oportunidade para aplicar os seus próprios ensinamentos apresentados em sua obra intitulada (por uma dessas deliciosas ironias históricas) de Capitalismo e liberdade. Os liberais ainda hoje defendem Friedman frente a esta estranha associação com o general chileno colocando que os ditames econômicos propostos pelo primeiro permanecem vigentes no país mesmo após o fim da ditadura. E a verdade é que as duas décadas da Concertación (socialistas e democratas-cristãos) representaram um enorme circo a favor da manutenção e aprofundamento do neoliberalismo no país. A democracia, contudo, ainda assim vem trazendo problemas para a política econômica de Friedman no Chile, como o demonstram os vários levantes estudantis no que toca à educação.
Hayek, ele próprio, declarou-se um apoiador de Pinochet. Agora, como é possível um tão abnegado defensor da democracia fazê-lo? À primeira vista, a defesa do capitalismo e da democracia é uma coisa só na obra do austríaco. Vejamos as palavras de O caminho da servidão:
“Muitos dizem, no atual momento, que a democracia não tolerará o 'capitalismo'. Se na acepção dessas pessoas 'capitalismo' significa um sistema de concorrência baseado no direito de dispor livremente da propriedade privada, é muito mais importante compreender que só no âmbito de tal sistema a democracia se torna possível. No momento em que for dominada por uma doutrina coletivista, a democracia destruirá a si mesma, inevitavelmente”.
No entanto, é necessário lembrar que no período em que escreve, impelido a defender a democracia por conta da pressão que os horrores do nazi fascismo acabara de submeter o continente europeu, Hayek está, contraditoriamente, em uma posição de verdadeira desvantagem na disputa política. A democracia europeia, bem como aquela dos Estados Unidos, havia escolhido uma via completamente diferente da proposta do Estado mínimo. Aliás, ela escolhera exatamente a via do nefasto “coletivismo” keynesiano. Por isso, o intelectual militante liberal não poderia louvar a democracia sem limites. Aqui, a defesa do capitalismo como sistema que permite a democracia torna-se o que é de fato: a defesa do capitalismo independentemente do que este signifique para a democracia. Linhas abaixo das últimas palavras que citamos, Hayek escreve:
“Não temos, contudo, a intenção de converter a democracia em fetiche. Talvez seja verdade que nossa geração fale e pense demais em democracia e pouco nos valores a que ela serve. […] A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é de modo algum perfeita ou infalível. Tampouco devemos esquecer que muitas vezes houve mais liberdade cultural e espiritual sob os regimes autocráticos do que em certas democracias – e é concebível que, sob o governo de uma maioria muito homogênea e ortodoxa, o regime democrático possa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras”.
O que é fundamental para a compreensão da questão é o reconhecimento, por parte do autor, da impossibilidade de controlabilidade do capital, e sua completa rendição a ela. Antes, significa uma tomada de partido consciente pela completa liberdade da regência do mercado sobre as vidas humanas. A recusa ao fetichismo com a democracia de Hayek é a sua aceitação total do fetichismo do mercado, do estranhamento das forças econômicas que se afastam dos seus produtores e voltam-se contra eles. Afastamento este que, em última instância arranca do mercado a mínima possibilidade de ser controlado, como por via de reformas por exemplo, e posto a serviço do atendimento das verdadeiras necessidades humanas. Em síntese, para Hayek “a única alternativa à submissão às forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado é a submissão ao poder também incontrolável e portanto arbitrário de outros homens” (destaque nosso). Um “libertarianismo” que somente viria ser posto à prova três décadas depois da publicação do livro. Aliás, posteriormente, já na década de 1960, a autor declararia em seu Fundamentos da liberdade que confessava ser da opinião de que seria preferível um “governo não-democrático sob a lei a um governo democrático ilimitado (e portanto essencialmente sem lei)”, isto é, um governo em que a democracia sob controle da maioria, essa massa sempre volúvel e que em inúmeros casos não tem condições de decidir por ela própria, possa ir além dos limites da defesa da liberdade do mercado.
Como podemos ver nos laboratórios grego e italiano, o que Hayek faz é, tão somente, descrever a estranha democracia do capital. Ele apresenta-a como um meio para a liberdade, apenas mais um dentre vários outros. A liberdade, esta sim um fim, é, no entanto, reduzida à mesquinha liberdade de mercado. Antes deveríamos dizer, à liberdade do mercado, ser que, apesar de impessoal e incontrolável, tem ele o direito, posto unicamente por sua própria existência, de controlar a vida humana. Ora, se devemos ser controlados pelo mercado, é evidente que qualquer possibilidade de real controle político deve ser descartada assim que esta ameace o primeiro.
O pavoneio vulgar liberal de defesa da liberdade é tão sofisticado quanto o permita a estabilidade política do momento em que ele seja proferido. No caso de Hayek, sua desvantagem frente ao keynesianismo o obrigava a colocar-se como um defensor da democracia por um lado, e um seu crítico pelo outro, fazendo com que ele seja mais contraditório a cada linha que passe. Talvez, se tivesse seguido o exemplo de honestidade política e intelectual que seu mestre Ludwig von Mises deu em 1927, comentando a ascensão do fascismo, os caminhos para a servidão ficassem mais claros ainda. Disse Mises:
“Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará escrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal”. (Retirado de Liberalismo: segundo a tradição clássica).
Os servos inabaláveis do mercado, de Hayek a Papademos, de Mise a Mario Monti, apresentam, mais uma vez, um convite global a que se unam a eles em sua servidão ao mercado. O exemplo de Mises deve nos servir de alerta frente aos “baluartes da democracia” com os quais somos obrigados a topar cotidianamente na mídia e nas cátedras. Quanto a eles, nos serve o aviso de Marx de que a “civilização e justiça da ordem burguesa aparecem à sua luz sinistra sempre que os escravos e trabalhadores forçados desta ordem se levantam contra os seus senhores. Então esta civilização e justiça ficam à vista como selvageria indisfarçada e desforra sem lei”. Não foi a essa “desforra sem lei” que os trabalhadores gregos e italianos forçaram seus senhores a recorrer com sua recusa a permanecer na servidão?