O Convite para a Servidão: Hayek e a Troika

sábado, 14 de janeiro de 2012

Originalmente escrito para www.criticadodireito.com.br

O Convite para a Servidão: Hayek e a Troika

ELI MAGALHÃES

Alguns fatos recentes referentes ao continente europeu e ao desenvolvimento da crise econômica que o abate atualmente servem de portas para reflexões importantes acerca do regime democrático atual. Falamos aqui, particularmente, dos rumos políticos da Grécia e da Itália, onde os líderes governamentais (respectivamente Papandreou e Berlusconi) escolhidos nas últimas eleições foram substituídos devido aos planos internacionais da chamada “Troika” (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional).

Com o agravamento da presente crise econômica, a estabilidade política europeia é claramente abalada. Mesmo antes das investidas populares do mundo árabe (Tunísia, Egito, Líbia, Síria etc.) a movimentação de trabalhadores, desempregados e jovens era forte na Grécia já entre 2009 e 2010, relocalizando, por exemplo, o KKE (Partido Comunista da Grécia) no espectro político nacional. No entanto, após os eventos do Norte da África, seguindo o exemplo das ocupações de praças, toda a Europa parecia entrar em fúria. Pensemos na Geração à Rasca portuguesa, ou nos indignados Espanhóis, as greves gerais gregas, os protestos contra Berlusconi na Itália (que misturaram repúdio aos escândalos sexuais e de corrupção nos quais o premiê esteve envolvido e a recusa dos planos econômicos da Troika), o levante da juventude da periferia britânica, além dos anteriores protestos de estudantes universitários que atearam fogo à sede do Partido Conservador, dentre outros. Ebulição que chega ao outro lado do Atlântico (movimento estudantil chileno, Ocupe Wall Street etc.) e retorna com ainda mais força.

A substituição dos líderes de governo da Grécia e da Itália, contudo, sinalizam para uma resposta ainda mais dura do capital contra todos esses movimentos. Trata-se da completa submissão desses povos aos interesses financeiros internacionais, retirando os dirigentes eleitos (por mais discordâncias que possamos nutrir aos mesmos) e colocando em seus lugares tecnocratas reconhecidos por seus serviços prestados ao sistema monetário. O objetivo central: aprofundar o corte de gastos estatais e garantir o pagamento das respectivas dívidas. Em termos simples, salvar os grandes financistas, os próprios responsáveis pela crise.

O caso de Papandreou, aqui, é ainda mais humilhante. Durante meses, seus dias foram marcados pelo dilema de como retomar a estabilidade política do país ao mesmo tempo em que mantinha a Grécia como membro da União Europeia. É dizer, como atender as demandas de aprofundamento das medidas de austeridade, nomeadamente o corte de direitos sociais, postas para tal continuidade na UE, e vencer a forte mobilização popular contra tais planos.

Encurralado, o governo decide pela convocação de um plebiscito geral acerca das medidas propostas pela Comissão Europeia para o país. O resultado que se desenhava da consulta era, como acontecera já na Islândia, visivelmente negativo para os planos da Troika e, portanto, dias antes da ida às urnas os gregos recebem a notícia de que ela seria cancelada. Ao cancelamento seguiu-se a demissão de Papandreou. O primeiro ministro foi substituído por Lucas Papademos, ex-vice presidente do Banco Central Europeu e ex-chefe do Banco da Grécia, que tratou de constituir um governo de tecnocratas mais duro e insensível às demandas sociais. Detalhe, o Sr. Papademos nunca recebeu nem um único voto do povo grego.

A crise grega, contudo, não seria tão preocupante para os interesses internacionais não fosse sua potencialidade em afetar a economia italiana. A decadência da Itália pode arrastar atrás dela todo o resto do continente. Entrando em situação de estagnação econômica com um crescimento de apenas 0,5% do PIB em 2011, com previsão de 0,1% para 2012, e uma dívida externa de aproximadamente 120% do que produz, o país é a mais franca preocupação da Comissão Europeia. É nesse sentido que Berlusconi renuncia por intervenção dos órgãos internacionais e é substituído por Mario Monti, comissário durante dez anos para assuntos de Mercado Interior da Comissão Europeia e assessor do banco Goldman Sachs. Monti, para chegar ao cargo de primeiro-ministro (e acumular também o de ministro da economia), foi nomeado às pressas como senador vitalício pelo presidente italiano Giorgio Napolitano. Somadas a tudo isso vêm as recentes manobras Sarkozy – Merkel no sentido de restringir ainda mais a participação no bloco econômico europeu, com a proposição de medidas tão inflexíveis que mesmo o Reino Unido recusou-se a aceitar.

Impossível, frente a todo esse itinerário, não nos recordarmos de Friedrich Hayek, um dos pais da ideologia neoliberal nascida nos meados da década de 1940, seguindo o pós-II Guerra Mundial. Em sua obra O caminho da servidão, o economista austríaco pretendia alardear os perigos das tendências “coletivistas” (se usarmos seu próprio vocabulário) presentes no pensamento europeu que impregnariam todas as correntes doutrinárias que não o próprio liberalismo. Para Hayek, do fascismo ao socialismo (aliás, o primeiro seria apenas uma “versão de direita” do segundo, pelo que o autor utiliza a palavra “socialismo” para designar ambos), passando pelas teses keynesianas, que são seu principal alvo no período em que escreve seu livro, a ideia de intervenção estatal na economia representam não mais do que a receita para a destruição das liberdades do indivíduo.

De forma que, restringir a liberdade de mercado por qualquer via, seja a supressão da propriedade privada dos meios de produção, ou o mais brando planejamento econômico estatal, incluindo aqui políticas de previdência social que se enfrentem, ainda que minimamente, com a livre concorrência, representariam todos passos inexoráveis em direção a regimes totalitários. Aqui, o totalitarismo deve ser entendido como a subsunção completa do indivíduo à “comunidade”. Como a perda do controle por parte do indivíduo frente a seus interesses através da imposição de forças autoritárias de outros homens sobre si, esses últimos em suposta representação da “sociedade”.

O resultado não pode ser outro, claro. Hayek defende que apenas com liberdade de mercado é possível a liberdade política e, portanto, somente uma sociedade baseada na livre iniciativa pode constituir-se como uma sociedade democrática. O ideal político neoliberal é apresentado escancaradamente: um Estado de Direito mínimo, baseado na igualdade formal. Isso representaria a “antítese do governo arbitrário”, já que todos os cidadãos deveriam ser tratados pelo Estado sem qualquer privilégio personalista. Indispensável ficar claro, ainda, que, se por um lado a receita para um governo democrático em que a liberdade individual é resguardada baseia-se fundamentalmente na igualdade formal perante a lei, por outro, qualquer tentativa política de transformar esta igualdade formal em uma igualdade substantiva significaria o fim deste Estado de Direito. Para alcançar a igualdade entre cidadãos diferenciados o Estado teria de tratá-los diferenciadamente, o que, evidentemente, é um contra senso com a ideia de mínima intervenção frente à uma estrita isonomia legal. Aqui estaria aberto o tal caminho para a servidão, a via para o surgimento de um regime totalitário.

Durante os trinta gloriosos anos da Europa pós-guerra, em que o Estado de Bem-Estar Social vigorou em alguns de seus poucos países (essa é toda a glória que o capital pôde oferecer à humanidade desde a derrocada do feudalismo), as ideias de Hayek permaneceram marginais. Assim também ocorreu com seu concílio neoliberal, corporificado na Sociedade de Mont Pèlerin (fundada em 1947), da qual participaram nomes como Ludwig Mises, Milton Friedman, Lionel Robbins e Karl Popper. Um espécie de partido intelectual contrário ao Estado de Bem-Estar e ao New Deal estadunidense, que havia eleito como sua tarefa propagandear os princípios liberais para toda a audiência que pudessem, especialmente intelectuais e lideranças políticas.

A coisa muda de figura com a crise da política anticíclica keynesiana, o fim do Welfare e a avassaladora crise econômica da década de 1970. A partir daí, lideranças políticas de matizes as mais conservadores passam a invocar os senhores de Mont Pèlerin para garantir a reconquista de altas taxas de lucro para a elite econômica. A famosa Margareth Tatcher, renomada não apenas por sua dureza na implementação fanática dos planos neoliberais na Inglaterra, mas também por sua política anti sindical audaz, por mais de uma ocasião prestou honras e fez uso de citações de Hayek. A saída do isolamento político é uma clara vantagem para todos aqueles que pretendem intervir na realidade. Ela, contudo, traz o ônus de impedir a continuidade de uma confortável posição abstrata em que se pode, por exemplo, defender a democracia ao mesmo tempo em que se propõe as políticas governamentais mais impopulares. Pois é a partir dos anos 1970 que se inicia uma ofensiva destrutiva aos direitos sociais, no intuito de fazer com que antigas áreas garantidas como direitos (previdência, saúde, educação etc.) passem a servir de novos nichos de valorização do capital. A liberdade de mercado não é aqui uma pretensão política em defesa da democracia, mas uma necessidade imperiosa para a própria continuidade da lógica do capital.

E é esta saída do ostracismo que nos apresenta o concílio neoliberal em pleno exercício de suas concepções “democráticas”. Milton Friedman, por exemplo, assume o posto de conselheiro econômico da ditadura sanguinária de Pinochet no Chile. Ora, parece mesmo uma boa oportunidade para aplicar os seus próprios ensinamentos apresentados em sua obra intitulada (por uma dessas deliciosas ironias históricas) de Capitalismo e liberdade. Os liberais ainda hoje defendem Friedman frente a esta estranha associação com o general chileno colocando que os ditames econômicos propostos pelo primeiro permanecem vigentes no país mesmo após o fim da ditadura. E a verdade é que as duas décadas da Concertación (socialistas e democratas-cristãos) representaram um enorme circo a favor da manutenção e aprofundamento do neoliberalismo no país. A democracia, contudo, ainda assim vem trazendo problemas para a política econômica de Friedman no Chile, como o demonstram os vários levantes estudantis no que toca à educação.

Hayek, ele próprio, declarou-se um apoiador de Pinochet. Agora, como é possível um tão abnegado defensor da democracia fazê-lo? À primeira vista, a defesa do capitalismo e da democracia é uma coisa só na obra do austríaco. Vejamos as palavras de O caminho da servidão:

Muitos dizem, no atual momento, que a democracia não tolerará o 'capitalismo'. Se na acepção dessas pessoas 'capitalismo' significa um sistema de concorrência baseado no direito de dispor livremente da propriedade privada, é muito mais importante compreender que só no âmbito de tal sistema a democracia se torna possível. No momento em que for dominada por uma doutrina coletivista, a democracia destruirá a si mesma, inevitavelmente”.

No entanto, é necessário lembrar que no período em que escreve, impelido a defender a democracia por conta da pressão que os horrores do nazi fascismo acabara de submeter o continente europeu, Hayek está, contraditoriamente, em uma posição de verdadeira desvantagem na disputa política. A democracia europeia, bem como aquela dos Estados Unidos, havia escolhido uma via completamente diferente da proposta do Estado mínimo. Aliás, ela escolhera exatamente a via do nefasto “coletivismo” keynesiano. Por isso, o intelectual militante liberal não poderia louvar a democracia sem limites. Aqui, a defesa do capitalismo como sistema que permite a democracia torna-se o que é de fato: a defesa do capitalismo independentemente do que este signifique para a democracia. Linhas abaixo das últimas palavras que citamos, Hayek escreve:

Não temos, contudo, a intenção de converter a democracia em fetiche. Talvez seja verdade que nossa geração fale e pense demais em democracia e pouco nos valores a que ela serve. […] A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é de modo algum perfeita ou infalível. Tampouco devemos esquecer que muitas vezes houve mais liberdade cultural e espiritual sob os regimes autocráticos do que em certas democracias – e é concebível que, sob o governo de uma maioria muito homogênea e ortodoxa, o regime democrático possa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras”.

O que é fundamental para a compreensão da questão é o reconhecimento, por parte do autor, da impossibilidade de controlabilidade do capital, e sua completa rendição a ela. Antes, significa uma tomada de partido consciente pela completa liberdade da regência do mercado sobre as vidas humanas. A recusa ao fetichismo com a democracia de Hayek é a sua aceitação total do fetichismo do mercado, do estranhamento das forças econômicas que se afastam dos seus produtores e voltam-se contra eles. Afastamento este que, em última instância arranca do mercado a mínima possibilidade de ser controlado, como por via de reformas por exemplo, e posto a serviço do atendimento das verdadeiras necessidades humanas. Em síntese, para Hayek “a única alternativa à submissão às forças impessoais e aparentemente irracionais do mercado é a submissão ao poder também incontrolável e portanto arbitrário de outros homens” (destaque nosso). Um “libertarianismo” que somente viria ser posto à prova três décadas depois da publicação do livro. Aliás, posteriormente, já na década de 1960, a autor declararia em seu Fundamentos da liberdade que confessava ser da opinião de que seria preferível um “governo não-democrático sob a lei a um governo democrático ilimitado (e portanto essencialmente sem lei)”, isto é, um governo em que a democracia sob controle da maioria, essa massa sempre volúvel e que em inúmeros casos não tem condições de decidir por ela própria, possa ir além dos limites da defesa da liberdade do mercado.

Como podemos ver nos laboratórios grego e italiano, o que Hayek faz é, tão somente, descrever a estranha democracia do capital. Ele apresenta-a como um meio para a liberdade, apenas mais um dentre vários outros. A liberdade, esta sim um fim, é, no entanto, reduzida à mesquinha liberdade de mercado. Antes deveríamos dizer, à liberdade do mercado, ser que, apesar de impessoal e incontrolável, tem ele o direito, posto unicamente por sua própria existência, de controlar a vida humana. Ora, se devemos ser controlados pelo mercado, é evidente que qualquer possibilidade de real controle político deve ser descartada assim que esta ameace o primeiro.

O pavoneio vulgar liberal de defesa da liberdade é tão sofisticado quanto o permita a estabilidade política do momento em que ele seja proferido. No caso de Hayek, sua desvantagem frente ao keynesianismo o obrigava a colocar-se como um defensor da democracia por um lado, e um seu crítico pelo outro, fazendo com que ele seja mais contraditório a cada linha que passe. Talvez, se tivesse seguido o exemplo de honestidade política e intelectual que seu mestre Ludwig von Mises deu em 1927, comentando a ascensão do fascismo, os caminhos para a servidão ficassem mais claros ainda. Disse Mises:

Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando ao estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará escrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é do tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal”. (Retirado de Liberalismo: segundo a tradição clássica).

Os servos inabaláveis do mercado, de Hayek a Papademos, de Mise a Mario Monti, apresentam, mais uma vez, um convite global a que se unam a eles em sua servidão ao mercado. O exemplo de Mises deve nos servir de alerta frente aos “baluartes da democracia” com os quais somos obrigados a topar cotidianamente na mídia e nas cátedras. Quanto a eles, nos serve o aviso de Marx de que a “civilização e justiça da ordem burguesa aparecem à sua luz sinistra sempre que os escravos e trabalhadores forçados desta ordem se levantam contra os seus senhores. Então esta civilização e justiça ficam à vista como selvageria indisfarçada e desforra sem lei”. Não foi a essa “desforra sem lei” que os trabalhadores gregos e italianos forçaram seus senhores a recorrer com sua recusa a permanecer na servidão?

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Originalmente escrito para www.criticadodireito.com.br

O “Novo Século Americano” começa com revoltas pró-democracia no Oriente Médio

ELI MAGALHÃES


Uma década se passou desde o 11 de setembro em que o World Trade Center foi derrubado pelo atentado terrorista assumido por Bin Laden. Recentemente, a morte do líder do Al Qaeda foi motivo de um triunfante posicionamento do atual presidente dos Estados Unidos, Obama.

Dois dias após o atentado em 2001, Bush, então presidente estadunidense, declarou que os EUA empreenderiam um imenso esforço para proteger tudo o que fosse “justo e bom”. Em sua forma peculiar de ver o mundo, esta invectiva significava a apresentação de uma nova política. A política do “novo século americano”. Uma tentativa do imperialismo de estender por ainda mais tempo a sua hegemonia econômica e militar sobre o resto do mundo, transformando, inclusive, as grandes potências da Europa, em meros acessórios, a exemplo da Inglaterra.

Não tardou. A invasão do Afeganistão, seguida imediatamente pela ocupação do solo iraquiano, vieram a demonstrar fortemente o significado real disto. A defesa do que seria “justo e bom” significou o desrespeito à soberania de países independentes, bem como o verdadeiro rasgo de toda a cartilha de direitos humanos de uma população civil de cujos os mortos se contam às centenas de milhares.

Se a política dos EUA serviu para provar algo, foi a debilidade estrutural do sonho kantiano (e ainda neo-kantiano) de uma “paz perpétua” mundial ou cosmopolita, sob a sociabilidade do capital. Nenhuma outra instituição se mostrou mais débil do que a ONU durante todo este processo. Ignorando completamente as variadas formas de veto possivelmente existentes dentro dos trâmites da entidade, o exército norte americano, não só confirmou que “armas de destruição em massa” sob domínio Hussein não passavam de um conto de fadas, ao mesmo tempo em que o Afeganistão torna-se hoje, simplesmente, um campo de treinamento militar para os Estados Unidos.

Particularidade de Bush? Obama não apenas sofre críticas por não ter retirado suas tropas do Iraque, como prometeu em campanha. Além disto, a própria forma como o atual presidente escolheu para comemorar a morte de Bin Laden demonstra seu desprezo por qualquer regra de direito internacional. Tal captura e execução, ainda agora, representa à mais veemente repulsa a qualquer princípio jurídico de tal ramo. Qualquer respeito à democracia, por parte dos EUA, está submetida à defesa de sua “incontestável” hegemonia.

Obama continua. Quando de sua visita ao Brasil, no início de 2011, ele ordenou a intervenção da OTAN na Líbia. Por si só o ato já é bastante significativo. No entanto, não fossem as circunstâncias peculiares, ele não teria ganho uma cor ainda mais berrante. A ordem de intervenção desferida por Obama foi durante uma refeição no Itamaraty. O centro da diplomacia brasileira se tornou, por minutos, o quartel general dos senhores da guerra. Um desrespeito duplo à soberania alheia. Uma prova vergonhosa da subserviência do governo brasileiro.

Do outro lado da corda, as movimentações de massas voltam a acontecer. O mundo árabe chacoalha 2011 com a queda sucessiva de diversos governos ditatoriais. O imperialismo se vê obrigado a movimentar, mais uma vez, suas tropas para aquele ponto do mapa múndi. A presença da OTAN na Líbia é prova suficiente da ameaça que o “novo século americano” sofre pelas rebeliões populares que tomam o palco do Norte da África. Egito e Tunísia são ponta de lança de um processo que recoloca o debate acerca das potencialidades e da necessidade da democracia política, que respingou, por exemplo, na Espanha da “democracia real”.

Três ou quatro décadas de ditaduras, no entanto, foram suficientes para a perda de quaisquer referências organizativas por parte destas populações. A necessidade de reconstrução de agremiações democráticas e, inclusive, socialistas, nestes territórios é posta em voga pela história. O refluxo dos grandes movimentos do início do ano já apresentam retrocessos no processos de abertura democrática da região. Não a toa, no Egito, é o mesmo exército que sustentou o regime por 30 anos quem conduz a transição. Na Líbia, o Conselho Nacional de Transição conta com a presença de antigos homens de Estado de Kadaffi.

Isto não reduz a potencialidade dos processos, apesar de aumentar suas contradições e dificuldades. O mundo árabe pôs uma mancha profunda nos planos de manutenção da hegemonia por parte dos EUA. O “novo século americano”, ao demonstrar sua total desconsideração pelas garantias democráticas, deparou-se por uma luta espontânea e determinadas de populações esmagadas por décadas sob regimes autoritários. Se estas batalhas evoluírem até seu ápice, tomando outros continentes como vem acontecendo, estaremos talvez, vendo, na verdade, a “última década americana”.

A Superação da Dicotomia dever ser e ser como Tema da Pesquisa Filosófica do Marxismo sobre o Direito

terça-feira, 2 de agosto de 2011



A Superação da Dicotomia dever ser e ser como Tema da Pesquisa Filosófica do Marxismo sobre o Direito

ELI MAGALHÃES

A crítica marxista do direito tem contribuições de imenso valor no que diz respeito ao entendimento do fenômeno jurídico. A principal delas tem sido aquela que, com raízes no soviético Pashukanis, concebe a forma jurídica como correlata à forma mercadoria. Atitude tal que, segundo Karl Korsch, liga esta concepção àquela apresentada por Lukács em sua teoria da reificação.

Esta, contudo, parece-nos uma grande contribuição para a compreensão do direito em termos de uma sua teoria geral. Ou seja, em termos da explicação teórica acerca de sua ontologia, sua forma de ser, sua lógica de funcionamento, por assim dizer. Entender o direito ligado aos imperativos econômicos da sociabilidade burguesa é uma aquisição importantíssima para discussões estratégicas fundamentais no seio da esquerda: reforma e/ou revolução; Estado e transição ao comunismo; luta por direitos etc. No entanto, não se pode assumir que ela esgota toda a reflexão crítica a ser feita em relação ao tema.

Não querendo constituir divisões estanques, este texto preocupa-se com uma outra perspectiva que não a da teoria geral do direito, mas a da filosofia do direito sob um viés crítico e, especificamente, marxista. Tratamos aqui de apontamentos gerais, não especificamente de uma discussão teórica de fundo, que estaria absolutamente além dos nossos limites aqui. Optamos, por enquanto, por apresentar mais uma proposta, do que uma reflexão madura. Não se trata aqui, portanto, de um texto acadêmico, mas de uma proposta para debate. Esclarecimento que apenas consta aqui por conta do tema a ser abordado, que, com certeza, merece um retorno posterior com maior rigor teórico e formal.

A filosofia do direito, diferentemente de uma teoria geral, estaria preocupada não apenas com o entendimento do fenômeno jurídico enquanto tal, mas com sua relação com as diversas outras dimensões da, digamos, razão prática dos homens. É dizer, ao invés de entender a ligação do direito com as lutas de classe, com a economia política, com os interesses de classe da burguesia, como o fazem Pashukanis, Stuchka e outros, pensamos que aqui o mais importante cai para a relação entre, por exemplo, direito e moral, direito e ética, direito e práxis etc. O leitor verá que estaremos longe de explorar todas estas relações neste texto. Mas intentamos apenas apresentar um roteiro que nos parece ser promissor em relação a uma postura do marxismo frente à filosofia do direito: sua proposta de entendimento da relação entre valor e fato. Entre, em outras palavras, dever ser e ser. Um tema, como se pode perceber, completamente ligado à filosofia do direito.

Andrew Feenberg, em seu Lukacs, Marx and the sources of the Critical Theory, apresenta uma hipótese interessante de tratar as obras dos autores que constam de seu título como meta-teorias da filosofia tradicional. Não precisamos aceitá-la por completo. Mas podemos mantê-la naquilo que parece expressar uma boa chave de entendimento da relação entre Marx e toda a filosofia que o precede, especialmente a filosofia clássica alemã.

Com tal sugestão, Feenberg quer apresentar as obras de juventude de Marx (aqui deixaremos de lado a discussão apresentada sobre o jovem Lukács), como uma investigação acerca das antinomias da filosofia tradicional. Ou seja, uma espécie de crítica da ideologia da sociedade de classes. Evidente que, para tanto, Marx teria já de ter se apropriado da descoberta hegeliana de que a história possibilita a mudança das formas de pensar. No entanto, como mais tarde vai se transformando ainda mais claro no pensamento marxiano, a determinação social do conhecimento, no que diz respeito à filosofia, encontra, em diversas eras, um ponto em comum: a divisão de classes e a propriedade privada. Este solo comum teria permitido que as grandes questões da filosofia tivessem permanecido, em essência, as mesmas. Por exemplo, a dicotomia entre interesse privado e interesse público, presente já no pensamento dos gregos, e remanescente ainda em Hegel e no próprio Marx.

Marx teria inaugurado uma outra forma de filosofia ao estender a ação humana para além do campo da ética, da política etc. Com sua teorização acerca do trabalho como centro ontológico de auto-afirmação humana, ou seja, como a própria categoria que permite aos seres humanos existirem enquanto gênero que constitui a si mesmo e ao seu mundo, ele supera limites deixados pela filosofia tradicional. Marx historiciza de maneira materialista, portanto, as dicotomias enfrentadas pelos filósofos que o antecedem como valor e fato, dever ser e ser, forma e conteúdo etc., e compreende que sua superação não depende do exercício especulativo, como gostaria Hegel, mas da superação das condições históricas que impõem estas mesmas dicotomias.

Com isto, trata-se de encontrar no próprio solo social a origem de tais dicotomias ao mesmo tempo em que se busca na discussão filosófica de seu tempo inspirações à sua superação. Por exemplo, foi Kant quem declarou que o homem jamais deveria ser visto enquanto um meio, mas como um fim em si mesmo. O próprio Kant, contudo, não pôde perceber que a sociabilidade burguesa que dá bases à sua teorização força a utilização do homem como um meio quando o degrada a um ser estranhado em diversas dimensões como apresenta Marx em seus Manuscritos de 1844. O homem estranhado de sua atividade, o trabalho, estranhado dos outros homens, do gênero humano e da natureza.

Rousseau, a seu turno, vendo a civilização como espaço de degradação do homem que, em natureza, é bom, chega a declarar a propriedade privada como a origem da desigualdade humana, mas não é capaz de propôr sua superação. Não por acaso, sua filosofia política é carregada com um preenchimento moral. Por exemplo, a necessidade (e a fé) da virtude do cidadão que participa da assembleia e age em interesse de todos. Algo que o próprio Kant adota, entendendo isto como uma diferença entre o dever ser e o ser. Rousseau denuncia a “sociedade de calculadores” em que vive, onde todos buscam a degradação do lucro, mas encontra a solução para ela não na superação da propriedade privada, como Marx, mas na educação moral para uma vida não submetida aos ditames do comércio.

O pensamento marxiano não se caracteriza por abrir mão de toda a filosofia que o precede. Antes, critica-a justamente na intenção de preservar o seu núcleo racional. Com isto, a máxima kantiana do homem como um fim em si mesmo pode ser recepcionada por Marx. Mas não como um fato já dado ou um valor inalcançável. Seria, então, apenas uma possibilidade, uma potência humana, identificada pela filosofia tradicional, mas relegada ao plano especulativo por conta das insuficiências desta em superar o solo social em que vive.

A filosofia burguesa, em seus momentos de pico, teria desvendado chaves importantes para a compreensão das forças próprias do gênero humano, mas seu apego às condições históricas em que vive, é dizer, à divisão de classes e, principalmente, à propriedade privada, não teria permitido que ela colocasse tais potencialidades como centro de sua preocupação. Em suma, não teria permitido que ela vislumbrasse a superação material da dicotomia entre o dever ser do homem como fim em si mesmo, e o ser (realmente existente) do homem como um mero meio de satisfação de interesses egoístas na sociabilidade burguesa. Em outras palavras, a filosofia tradicional não poderia conceber outra sociabilidade que não a burguesa e, por óbvio, não poderia conceber sua superação histórica. Logo, não poderia vislumbrar, por exemplo, a revolução socialista, nem sua necessidade, nem sua mera possibilidade.

A revolução, portanto, não apenas liberaria o gênero humano do estranhamento (e da reificação, se quisermos incluir Lukács), mas cumpriria, também, o papel de realizar a filosofia. Ela resolveria antinomias que o pensamento especulativo, por si só, não pode resolver. Desta forma, a divergência entre dever ser e ser, teria de ser explicada a partir da ótica do dilaceramento do gênero humano provocado pela propriedade privada e pela sociedade de classes. A revolução, além de sua evidente natureza política, seria também uma exigência da razão. Razão esta que não existiria apenas na cabeça dos filósofos, mas que precisava de um correlato material. A filosofia precisaria ser realizada. O homem como fim, deixaria de ser um objetivo axiológico especulativo, para tornar-se quase que um programa, digamos, filosófico-político. Afinal, ao filósofo não seria apenas permitido interpretar o mundo, mas também transformá-lo.

As antinomias identificadas pela filosofia burguesa seriam dadas por tendências e contra tendências realmente existentes na vida social. Evidente que as soluções especulativas não seguem esta lógica em sua totalidade. Por exemplo, a república de Platão possuiria, evidentemente, inúmeras dificuldades em tornar-se real. Mas não é o mesmo com o contrato social de Rousseau? Contudo, a possibilidade de que estas respostas sejam dadas coloca definitivamente a questão da busca de uma resolução para as divergências entre interesse privado e interesse público, por exemplo. E a crítica de Marx em Para a Questão Judaica, ao papel do cidadão submetido por completo ao indivíduo burguês e, portanto, incapaz de cumprir o papel de representante do gênero humano, não visa, por sua vez, descartar a necessidade de constituição da humanidade enquanto gênero. Pelo contrário, ela visa, aqui também, superar o conteúdoirracional da sociabilidade burguesa, apresentado com uma forma racional pela filosofia. Ou seja, o Estado democrático-burguês, apresentado como solução para tal dicotomia é uma farsa, mas o é por estar ainda baseado na propriedade privada que exige um burguês egoísta, e não no ser humano genérico, que é traduzido especulativamente no cidadão.

Esta própria divisão entre o cidadão especulativo, e o indivíduo burguês realmente existente é uma chave interessante para o estudo marxista da relação entre direito e moral. Enquanto esta última está relacionada com as decisões particulares, a juridicidade justifica-se por apresentar-se enquanto decisões gerais instituídas em normas de convivência que devem ser seguidas por todos independentemente de seu convencimento pessoal. Como Mészáros aponta em seu A Teoria da Alienação em Marx, a mera existência do direito demonstra como a moral falha na sociabilidade burguesa em orientar a ação dos indivíduos em direção ao bem comum. No entanto, o direito por si só, destituído de qualquer orientação valorativa torna-se mero instrumento de arbítrio, ao fazer passar determinados valores particulares como genéricos. Enquanto a moral, destituída de legalidade jurídica, torna-se normatização inócua.

Ou antes, é transformada em justificação de sua própria não realização. Com diz o próprio Marx nos Manuscritos de 1844:

A moral da economia nacional é o ganho, o trabalho e a poupança, o ascetismo – mas a economia nacional promete-me satisfazer minhas carências – A economia nacional da moral é a riqueza em boa consciência, em virtude etc., mas como posso ser virtuoso se nada sou, como posso ter uma boa consciência se nada sei? – Está fundado na essência do estranhamento que cada esfera me imputa um critério distinto e oposto: um, a moral; outro, a economia nacional, porque cada uma é um estranhamento determinado do homem e cada uma fixa um círculo particular da atividade essencial estranhada; cada uma se comporta estranhadamente com relação à outra” (…) “Além disso, a oposição entre a economia nacional e a moral é também apenas uma aparência e, assim como é uma oposição, novamente não é oposição alguma. A economia nacional apenas expressa, a seu modo, as leis morais”.

Não há, portanto, uma relação verdadeira de pertencimento do indivíduo ao gênero, mas uma disputa do primeiro contra o último. Uma sociedade de mônadas que se chocam em favor de seus interesses egoístas. E que trará a seu turno, sua própria formulação moral. Afinal, foi nesta sociabilidade que surgiu a ideia da mão invisível, que permitiria que o homem seguisse seu interesse egoísta, assegurando-lhe que seu próprio enriquecimento individual estaria garantindo o enriquecimento de toda a humanidade. É esta disputa entre o ser humano genérico e seus indivíduos que justifica uma separação/imbricação tal entre direito e moral, já que é necessária uma normatização externa e repressiva que regule a guerra de todos contra todos, efetivamente existente na sociedade civil. E isto pode trazer apontamentos interessantes para a explicação da existência no ordenamento jurídico burguês de normas que estabelecem interesses genéricos como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana não apenas como discurso ideológico, mas como princípio eficaz, ainda que sua eficácia permaneça no plano do dever ser, ou mesmo completamente adequada aos limites da reserva do possível burguesa. A figura do cidadão, apesar de especulativa, não tem origem, portanto, apenas da vontade dos filósofos. Ela representa a percepção de um gênero humano, de interesses genéricos e da necessidade efetiva de que estes interesses sejam satisfeitos.

A pesquisa marxista da filosofia do direito pode encontrar um campo rico de reflexões em temas como estes. A partir da inspiração trazida pela filosofia burguesa tradicional, criticada e garimpada em seu núcleo racional apresentar uma própria teorização marxista acerca das antinomias fundamentais da filosofia e daquelas especificamente importantes para a filosofia do direito. Tais reflexões, inevitavelmente, nos levarão ao debruçamento sobre um dos temas mais caros da filosofia jurídica: a liberdade. Entendê-la em suas relações com a necessidade de afirmação efetiva das potencialidades humanas, da realização do homem como um fim, da possibilidade de construção da vida humana de acordo com as normas postas pelo próprio gênero não estranhado, da superação da dicotomia entre valor e fato, significa, inclusive, entender os limites da própria pesquisa filosófica. Significa passar a se pôr em busca da transformação do mundo.