Estado laico. O que é isso, companheira?

sábado, 28 de maio de 2011

Carta do grupo Católicas pelo direito de decidir, à Presidenta Dilma.

Estado laico. O que é isso, companheira?
Carta aberta de Católicas pelo Direito de Decidir à Presidenta Dilma Rousseff sobre a polêmica criada em torno do kit anti-homofobia




Presidenta Dilma,

Estamos estarrecidas! A polêmica criada em torno do kit anti-homofobia e o recuo do governo federal ante as pressões vindas de alguns dos setores mais conservadores e preconceituosos da sociedade nos deixou perplexas. E temerosas do que se anuncia para uma sociedade que convive com os maiores índices de violência e crimes de morte cometidos contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersex (LGBTTI) do mundo. Temos medo de um retorno às trevas, senhora Presidenta, e não sem motivos.

A vitoriosa pressão contra o kit anti-homofobia da bancada religiosa, majoritariamente composta por conservadores evangélicos e católicos, em um momento em que denúncias de corrupção atingem o governo, traz de volta ao cenário político a velha prática de se fazer uso de direitos civis como moeda de troca. Trocam-se, mais uma vez, votos preciosos e silêncio conivente pelo apoio ao preconceito homofóbico que retira de quase vinte milhões de brasileiros e brasileiras o direito a uma vida sem violência e sem ódio. A dignidade e a vida de pessoas LGBTTI estão valendo muito pouco nesse mercado escuso da política do toma-lá-dá-cá, senhora Presidenta! E o compromisso com a verdade parece que nada vale também.

Presidenta, convenhamos, a senhora sabe que o kit anti-homofobia é um material educativo, que não tem por finalidade induzir jovens a se tornarem homossexuais, até mesmo porque isso é impossível, como tod@s sabemos. Não se induz ninguém a sentir amor ou desejo por outrem. Mas respeito, sim. E ódio também, senhora Presidenta... ódio é possível ensinar! Poderíamos olhar para trás e ver o ódio que a propaganda nazista induziu contra judeus, ciganos, homossexuais. Porém, infelizmente, não precisamos ir tão atrás no tempo. Temos terríveis exemplos recentes de agressões covardes e aviltantes a pessoas LGBTTI e o enorme índice de violência contra as mulheres acontecendo aqui mesmo, em nosso próprio país.

Quando a senhora afirma, legitimando os conservadores homofóbicos, que é contra a propaganda da "opção" sexual, faz parecer que alguém pode, de fato, "optar" por sentir esse ou aquele desejo. Amor, desejo, afeto não são opcionais, ninguém escolhe por quem se apaixona, senhora Presidenta! Mas se escolhe ferir, matar, humilhar.

Quando a senhora diz que todo material do governo que se refira a "costumes" deve passar por uma consulta a "setores interessados" da sociedade antes de serem publicados ou divulgados, como estampam hoje os jornais, ficamos ainda mais perplexas. De que "costumes" estamos falando, senhora Presidenta? E de que "setores interessados"? Não se trata de "costumes", mas de direitos de cidadania que estão sendo violados recorrentemente em nosso país e em nome de uma moral religiosa conservadora, patriarcal, misógina, racista e homofóbica. Trata-se de direitos humanos que são negados a milhões de pessoas em nosso país!

E "setores interessados", nesse caso, deveria significar a população LGBTTI e todas as forças democráticas do nosso país que não querem ter um governo preso a alianças políticas duvidosas, ainda mais com setores "interessados" em retrocessos políticos quanto aos direitos humanos da população brasileira.

O país que a senhora governa ratificou resoluções da ONU tomadas em grandes conferências internacionais, em Cairo (1994) e em Beijing (1995), comprometendo-se a trabalhar para que os direitos sexuais e os direitos reprodutivos sejam reconhecidos como direitos humanos. No entanto, até hoje pessoas LGBTTI morrem por não terem seus direitos garantidos. Mulheres morrem pela criminalização do aborto e pela violência de gênero.

Comemoramos quando uma mulher foi eleita ao cargo máximo de nosso país. Ainda mais porque, como boa parcela da sociedade, levantamos nossa voz contra o aviltamento do Estado laico, ao termos um uso perverso da religião nas campanhas eleitorais de 2010 para desqualificar uma mulher competente e com compromisso com a dignidade humana. Antes ainda, levantamos nossa voz a favor do III PNDH, seguras de que deveria ser um instrumento de aprofundamento do respeito aos direitos humanos em nosso país. Agora não temos o que comemorar, senhora Presidenta! Parece que o medo está, de novo, vencendo a verdade. E a dignidade.

Infelizmente, temos de - mais uma vez! - vir a público exigir que os princípios do Estado laico sejam cumpridos. Como a senhora bem sabe, a laicidade é essencial à democracia e não se dá pela simples imposição da vontade da maioria, pois isso resulta em desrespeito aos direitos humanos das minorias, sejam elas religiosas, étnico-raciais, de gênero ou orientação sexual. Não existe democracia se não forem respeitados os direitos humanos de todas as pessoas. Impor a crença religiosa de uma parcela da população ao conjunto da sociedade coloca em risco a própria democracia, já que os direitos humanos de diversos segmentos sociais estão sendo violados. Portanto, senhora Presidenta, não seja conivente! Não permita que alguns setores da sociedade façam do Estado laico um conceito vazio, um ideal abstrato.

Como Católicas pelo Direito de Decidir, repudiamos o uso das religiões neste contexto de manipulação política e afirmamos nosso compromisso com a laicidade do Estado, com a dignidade humana e nosso apoio ao uso do kit educativo pelo fim da homofobia nas escolas brasileiras.

Criticar a democracia pode ser a melhor forma de defendê-la.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Texto originalmente produzido para a www.criticadodireito.com.br.
Importante lembrar a todos que o código já foi aprovado na Câmara Federal e se encaminha para o Senado.

Criticar a democracia pode ser a melhor forma de defendê-la.

postado em 14/05/2011 13:25 por Revista Crítica do Direito - RCD ELI MAGALHÃES


O recente impasse na Câmara dos Deputados acerca da reforma do Código Florestal acaba por tornar-se um interessante laboratório para que se perceba o real funcionamento deste fórum. Após quase quinze horas de negociações apenas dentre os deputados da base governista, o próprio líder do governo, Vacarezza (PT), vai ao púlpito pedir pelo adiamento das votações. Segundo ele, por um lado, o texto do relator Aldo Rebelo (PCdoB) estava alterado em relação aos pontos que teriam sido acordados anteriormente. Por outro, dentre deputados de partidos governistas, havia um movimento em direção a uma votação congruente com o destaque apresentado pela oposição DEM-PSDB. A votação foi adiada para a próxima terça feira, 17 de maio.


A proposta original de Aldo Rebelo continha como pontos, a flexibilização das APP's (áreas de preservação permanente) deixando que os estados tenham a prerrogativa de reduzir em até 50% a área de preservação da vegetação próxima aos rios (que varia de 30 a 500 metros), e definam se seria possível a exploração de topos de morros e encostas. Além disto, a proposta do deputado isenta propriedades de até quatro módulos rurais de qualquer reserva legal de vegetação original, podendo seus proprietários, portanto, desmatar completamente. Esta reserva legal varia entre 80% na região amazônica, 35% no Cerrado e 20% nas demais regiões. Por fim, outro ponto polêmico é a anistia dos desmatadores de um período de cinco anos para cá. Eles não teriam o dever pagar multas, ou de recompor a área desmatada segundo a proposta do “comunista”.


Os deputados governistas firmaram apenas um acordo: o de que a flexibilização das áreas de preservação permanente seria feito através de decreto presidencial. Segundo seu líder, o governo não concordava com a alteração isenção da reserva legal para propriedades de até quatro módulos rurais, mas “cedeu” isto nas negociações buscando consenso.


Os trabalhos da quarta feira, 11 de maio, foram encerrados em meio a uma verdadeira baixaria, com Aldo Rebelo sendo chamado de traidor pelos governistas, ao mesmo tempo em que acusava o marido de Marina Silva de contrabandista de madeira no Acre. E meio a tudo isto, fica a questão: por quê alterar o Código Florestal?


Como se pode notar facilmente, todas as alterações vão no intuito de permitir um maior desmatamento. O relator diz defender estas posições em prol dos pequenos agricultores que teriam problemas com a atual legislação. Coloca, ainda, que estas alterações são necessárias ao desenvolvimento da economia nacional, e que há, na verdade, um lobby do imperialismo contrário a isto. Aldo Rebelo, portanto, tenta passar um verniz de “interesse nacional” ou, se quisermos, “interesse universal” dos brasileiros às suas propostas. E, assim, louva tal processo “democrático” na tentativa de conquistar legitimidade para seu relatório.


Ora, em décadas a fio de mobilização de pequenos camponeses e de trabalhadores sem terra, pode-se recordar de uma tal oposição destes ao atual Código Florestal que data de 1965? Não cremos. Inclusive, frente à proposta do deputado do PCdoB, os movimentos do campo colocaram-se em defesa do Código de 1965. Assim declarou a Via Campesina:


A Via Campesina Brasil reafirma a sua posição pela manutenção do atual Código Florestal Brasileiro. Rechaçamos a proposta de alteração apresentada pelo deputado Aldo Rebelo, que incorpora as grandes pautas dos ruralistas, como redução de Área de Preservação Permanente e anistia das multas por desmatamentos”. (fonte)


Aldo Rebelo não mente em dizer que defende interesses. Sua desfaçatez está em querer fazer com que acreditemos que estes interesses advém dos movimentos camponeses. E eis uma tarefa ainda mais difícil, quando toda a bancada ruralista (incluindo a governista) se prepara para a declaração de uma sonora aprovação às alterações propostas. Os principais aliados do relator durante toda esta celeuma foram Kátia Abreu e Ronaldo Caiado (DEM), ruralistas declarados, e demais dirigentes da Confederação Nacional da Agricultura. Aldo Rebelo, por seu lado, teve doações de R$ 130 mil, de latifundiários, e R$ 70 mil, da Bunge Fertilizantes. Enfim, o “comunista” tornou-se fiel representante dos ruralistas, chegando a bater de frente com o próprio governo do qual é base aliada.


Os “interesses universais” caem por terra quando é notável que a alteração contém reivindicações históricas da bancada ruralista, representantes dos verdadeiros responsáveis pelo desmatamento para fronteira pecuária e expansão do agronegócio. Os valores que estão em jogo aqui são os interesses postos pela propriedade privada e pelo capital frente à preservação de algo que vem se tornando a dúvida das atuais gerações: o meio ambiente. Fica demonstrado que para o capital seus insaciáveis e incontroláveis impulsos de autovalorização são mais importantes do que a preservação da própria vida do planeta.


O Parlamento, que deveria segundo todas as teorias liberais, e segundo a forma como Aldo Rebelo defende sua proposta, pautar-se pelos “interesses universais”, abaixa sua cabeça frente à vontade de uma classe específica e que está em expresso confronto com as necessidades da ampla maioria. Aldo Rebelo cria um apoio popular imaginário para seu projeto. Cria também um rigoroso critério científico para o mesmo, mesmo quando entidades como a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência e a Acadêmia Brasileira de Ciência lançam longo parecer contrário às alterações propostas. E mesmo o Ministério Público Federal, baseado em parecer preparado por sua Câmara do Meio Ambiente, declarou-se contra as alterações e promete pugnar por sua inconstitucionalidade, levando o debate para o judiciário.


Ao mesmo tempo, o único acordo que o governo federal se dispôs a fazer é irrisório em relação à substância do texto proposto. O grande acordo que está por trás disto é que o desmatamento será aprovado, pois esta questão se colocou de fora das discussões na Câmara. As conversações a portas fechadas demonstraram que o capital e a propriedade privada foram mais “universais” do que o povo, a ciência e a justiça. É impossível não lembrar de palavras escritas há 168 anos sobre a democracia tal como está posta:


Mais enigmático se torna esse fato quando vemos que a cidadania de Estado rebaixa mesmo a comunidade política dos emancipados políticos a mero meio (…) que, portanto, declara o citoyen [cidadão] servidor do homme egoísta; degrada a esfera em que ele se comporta como ser genérico à esfera em que ele se comporta como ser parcelar; finalmente, não é o homem como citoyen, mas o homem como bourgeois [burguês] que é tomado por homem verdadeiro e propriamente dito”. (Marx em Para a Questão Judaica).


Marx escreveu este texto em meio a uma polêmica acerca da possibilidade de os judeus, na Alemanha monarquista, terem acesso a direitos políticos e sociais. Ele viu como necessário a crítica da democracia para defender que os judeus fosse contemplados por ela, já que se imaginava que, por serem religiosos, não poderiam possuir direitos em um Estado que se pretendesse laico. Criticando a emancipação política, as revoluções democráticas que haviam ocorrido em França e na Inglaterra, ele demonstra que ela não se confunde com a emancipação humana, em que os homens estariam tão preenchidos por suas forças próprias, que não precisariam, por exemplo, da religião.


Marx, portanto, critica a democracia como uma liberdade parcial. Como meio caminho até a emancipação verdadeira. Critica a democracia para, ressalte-se, defender a sua própria ampliação, a sua extensão aos judeus. É justamente o caminho contrário a Aldo Rebelo, que louva-a, no intuito de reduzi-la, diminuir os direitos dos povos a um meio ambiente saudável. A proposta de Aldo Rebelo demonstrou como a crítica de Marx foi aguda. O cidadão, o homem público, foi degradado à esfera dos interesses egoístas do homem privado, do burguês. Esta situação ocorre constantemente, e continuará ocorrendo, enquanto as bases sociais da própria democracia forem a propriedade privada, o capital e a exploração do homem pelo homem. Conquistar a emancipação humana, é a chave para que a humanidade se livre dos interesses egoístas, e possa ter acesso a seus interesses universais. Dada a avançada destruição do planeta, em termos ambientais e sociais, esta é uma necessidade cada vez mais urgente. Enquanto isto, criticar a democracia, como demonstrou Marx, pode ser a melhor forma de defendê-la.

O incrível caso clínico da miopia mistificadora: ou a Veja entre Bolsonaros e Bresser-Pereiras.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Texto produzido para a revista eletrônica Crítica do Direito.

O incrível caso clínico da miopia mistificadora: ou a Veja entre Bolsonaros e Bresser-Pereiras.Link

postado em 07/05/2011 12:45 por Vinícius Magalhães Pinheiro
Eli Magalhães
NÚMERO 1 - VOLUME 2
2 a 9 de maio de 2011

O pior cego é aquele que não quer ver, diria a sabedoria popular. Mas o que dizer quando a perda de visão não é total? Quando há, em verdade, uma distorção do foco das imagens? E quando esta distorção é, sem sombra de dúvidas, proposital?

Lendo recente matéria da revista Veja, o leitor poder-se-ia sentir praticamente em uma república socialista. Pois, para a revista, vive-se, no Brasil, em um país onde não há direita. Ainda mais, não há direita organizada em partidos políticos. Para a Veja, “'livre iniciativa', 'responsabilidade individual' e 'valores morais' raramente são ouvidas pelos corredores do Congresso ou do Palácio do Planalto. As palavras 'social' e 'trabalhista' e 'socialista' aparecem na maioria dos nomes das legendas”.

Uma profunda lição de como não se fazer uma análise política, como se pode ver. Afinal, há muito que definir o espectro ideológico de um partido por meio do que significam as letrinhas que vêm depois do “P” não tem sido aconselhável para aquele que deseje entender a realidade da luta política de um país. O mais impressionante, é que o texto se contradiz profundamente ao analisar o papel cumprido pela discussão acerca da descriminalização do aborto durante o pleito eleitoral de 2010. A Veja diz que o “tema surgiu de forma quase clandestina, em discussões na internet e nas igrejas. O PSDB de José Serra veio a reboque, aproveitando-se do tema para criticar a petista Dilma Rousseff – que, por sua vez, se apressou em tentar apagar o passado e dizer que nunca havia defendido a legalização do aborto”.

Deixando de lado uma análise mais pormenorizada de como algum tema pode surgir clandestinamente na internet, a não ser que saia em sites como o Wikileaks, o que é central aqui é: como um tema tão marginal, praticamente não ouvido no Congresso, e que surge clandestinamente, consegue fazer com que as duas maiores legendas eleitorais de esquerda do país modifiquem seus discursos até o ponto de apressarem-se em tentar apagar o passado? Algo aqui não encaixa muito bem. O fato real, é que o tema nem é clandestino, nem apareceu tardiamente no debate nacional. Basta lembrar-se que já durante o Governo de Lula, as forças conservadoras do país, com o aval do então presidente, retiraram do PNDH-3, a descriminalização do aborto. E em um país com uma expectativa de que no próximo censo, o eleitorado evangélico cresça para 40%, uma campanha eleitoral recheada de obscurantismo não pode ser surpreendente para ninguém. Nem mesmo para a Veja. A “Carta ao povo de Deus” de Dilma Rousseff não guarda, infelizmente, nenhuma incoerência com a “era PT” na presidência.

O PNDH-3, por sinal, é uma das melhores provas de que a direita no Brasil existe e está organizada. Além da descriminalização do aborto, foram barradas outras medidas referentes, por exemplo, aos conflitos de terra, e aos assuntos inacabados da ditadura militar no país, como a abertura de arquivos. Ainda no decorrer destes debates, houve decisão judicial do Supremo Tribunal Federal em não revisar a famigerada Lei da Anistia que perdoa os torturadores brasileiros, mesmo reconhecendo-se que o país é signatário de convenções internacionais que classificam o crime como de lesa-humanidade. O STF preferiu correr o risco de uma sanção da OEA, do que tocar nos seus generais de centro (para a Veja, o espectro político do país vai até aí). E aqui, por exemplo, uma das figuras principais foi o então ministro da defesa Nelson Jobim, da legenda de centro esquerda (na classificação da Veja), PMDB, que compunha (e até hoje compõe) o governo, também de centro esquerda, petista.

Ora, há duas formas de certos debates não aparecerem no Congresso. Eles podem, por um lado não serem defendidos por nenhuma legenda política, é verdade. Mas podem, por outro, não serem questionados por ninguém. Como haver um debate que defenda apaixonadamente a livre iniciativa quando ela sequer é questionada? O Congresso não precisa mais posicionar-se acerca da mesma, pois esta está completamente assegurada no Brasil. Não a toa, em recente entrevista, Bresser-Pereira, ex-ministro de FHC, que liderou a reforma gerencial do Estado brasileiro, nome difícil para neoliberalismo, declarando que o PT assumiu o posto ocupado pelo PSDB ao chegar ao governo, comenta nos seguintes termos o bolsa-família: “Sempre acreditei piamente na competição (…) Na sociedade que vivemos, existe uma quantidade muito grande de pessoas cuja capacidade de competir é muito limitada (…) essas pessoas não são capazes de se defender da competição como devem”. Em suma, Bresser-Pereira, que recentemente se descobriu de centro esquerda, um dos grandes nomes das reformas psdbistas do país, é um grande defensor da competição, ou seja, da livre concorrência e iniciativa, analisando, nesse ponto melhor do que a Veja, que é exatamente isto que não está ameaçado em nenhuma das políticas dos últimos dois governos e deste atual. Bresser-Pereira poderia ter dado esta entrevista em 2002, com o lançamento da “Carta ao Povo Brasileiro” durante a campanha de Lula à presidência, em que o candidato afirma o seu compromisso de não modificar absolutamente nada das estruturas econômicas do país.

Diga-se de passagem, que mesmo as centrais sindicais que declaram apoio à atual presidenta petista estão cada vez mais abertamente defendendo a tão preciosa livre iniciativa. Em entrevista recente ao jornal Valor Econômico (13 de Abril), Sérgio Nobre, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, filiado à Central Única dos Trabalhadores, disse: “Se ficarmos presos à CLT, travaremos uma série de avanços que são fundamentais para os trabalhadores e para as empresas”. E conclui que o “espaço para negociação no Brasil é quase inexistente, tudo é engessado pela legislação”. Ora, para que uma legenda de oposição precisa fazer qualquer estardalhaço em defender a livre iniciativa, quando até mesmo a proposta de FHC, de que o negociado seja mais válido do que o legislado, para reforma trabalhista já vem sendo defendida pelos setores sindicais governistas?

A Veja vê isso muito bem. No entanto, ela sofre de um incrível caso de miopia mistificadora, enfermidade que força com que o paciente, conscientemente, retire de foco as questões fundamentais de uma discussão para defender um ponto de vista claramente indefensável. Em um momento em que a principal ferramente política fundada pelos trabalhadores brasileiros assume o governo e lança mão de uma série de políticas que, abertamente, fundam-se na continuidade dos governos psdbistas anteriores, com o diferencial de ter forte capilaridade social legada por sua própria origem histórica, a direita clássica do país, identificada, como nem a Veja pôde negar, à ditadura militar, fica por sua vez completamente sem projeto e desnorteada.

Em um país em que a velha esquerda passa à direita, e o melhor exemplo recente é o apoio declarado do PCdoB ao governo de Gilberto Kassab em São Paulo, e a velha direita fica sem projeto político claro, sendo deslocada com bastante força do poder institucional central, figuras como Jair Bolsonaro ainda reúnem grupos fascistas para apoiar suas declarações racistas, machistas, homofóbicas e ditatoriais em plena luz do dia. Enquanto isso, a Veja sente a necessidade de publicar um texto do quase falecido politicamente Fernando Henrique Cardoso discutindo o verdadeiro “papel da oposição”. Uma tentativa desesperada de reorganizar a direita clássica em torno de um projeto de poder. Com uma pitadinha a mais de sabor, legado pela ilusão de rebeldia que estas “corajosas” e desvairadas afirmações dão àqueles que se prestam a acreditar nelas.

Quanto ao específico problema visão da Veja nem o leitor, nem o autor deste texto podem fazer grandes coisas. A preocupação agora deve ser atuar politicamente para que ele não se torne uma epidemia ainda maior do que já é no Brasil. Para tanto, trazer novamente o debate político aos seus eixos centrais é de primeira importância. Classifiquemos de direita aqueles que defendem os interesses do capital, das grandes empresas e da manutenção de stauts quo. A partir daí, veremos que é a esquerda brasileira que precisa se rearticular e reorganizar suas forças.